A Dama de Shalott
Análise semiótica
O texto visual é composto de camadas. As cores e as formas se complementam formando imagens, e as imagens são interpretadas pelo observador, sendo entendidas como objetos e cenários e despertando sentimentos. Os objetos, cenários e sentimentos em conjunto formam a cena, e a cena analisada em um contexto conta uma história. A semiótica é o estudo dos signos, visuais ou não, e a análise do que representam, em seus diversos níveis.
Significado oculto
Embora obras de artes plásticas tenham quase sempre um significado aparente à primeira vista (nem que este significado seja apenas uma forma colorida), são os significados subjetivos e ocultos por trás dos elementos que compõem a maior parte de seu valor artístico. Algumas obras possuem, inclusive, significados ocultos no sentido de que representam, em maior ou menor grau, conceitos do ocultismo, guardando relação com sistemas mágicos e cujo estudo pode auxiliar em muito o aprendizado da magia. Tanto os símbolos quanto a magia atuam majoritariamente no inconsciente.
Este é o caso, por exemplo, das pinturas de John William Waterhouse, que se baseiam em sua maioria em temas ligados à magia natural, representando feiticeiras e personagens de contos com teor mágico. Este texto consiste na análise semiótica de uma de suas obras, a Dama de Shalott. Esta análise possui cunho ensaístico, não pretendendo ser um tratado definitivo sobre a obra, e tem como foco os significados ligados primordialmente ao ocultismo e ao simbolismo mágico.
A Dama de Shalott
O quadro “A Dama de Shalott” representa a personagem principal do poema homônimo publicado em 1833 e republicado em 1842 pelo poeta inglês Alfred Tennyson. O poema conta a história de uma dama que vivia em uma torre na Ilha de Shalott, e que sobe de uma maldição que cairia sobre si mesma caso continuasse olhando pela janela para a cidade de Camelot. Sendo assim, a dama se manteve isolada na torre, onde tecia noite e dia, vendo o mundo exterior apenas por meio de um espelho que possuía na torre. Cansada de somente ver o mundo por meio do espelho, a dama teve um vislumbre de um cavaleiro que lhe chamou a atenção, Sir Lancelot, e então se lançou à janela para olhar melhor para ele. Neste momento, o pano que tecia voou para fora da janela, e o espelho se quebrou. Entendendo, então, que sua maldição estava para se realizar, e sem saber o que fazer, a dama foi de encontro a seu destino, sem olhar para trás, como em transe. Subiu em um barco que aguardava sob um salgueiro e soltou suas correntes, esperando que a correnteza a levasse para Camelot, onde poderia encontrar seu amado Sir Lancelot. Porém, a jovem morreu de frio antes de chegar a seu destino, e seu corpo foi encontrado dentro do barco pelo povo de Camelot, incluindo Sir Lancelot, que mesmo sem entender aquela cena ficou encantado por sua beleza.
Este poema foi utilizado por Waterhouse em outras pinturas (por exemplo, em “I am Half Sick of Shadows, said the Lady of Shalott”, onde é apresentada a parte interna da torre), e inclusive se baseia em outra obra literária da mesma época (a Dama de Shalott seria a dama Elaine, do livro Morte d’Artur, de Thomas Malory), sendo também representado por outros artistas e musicado por Loreena MacKnitt.
De forma geral, o conto faz alusão à iniciação da jovem no mundo adulto, à busca do amor que pode levar à morte, e à entrega ao próprio inconsciente. O mito da caverna de Platão também se relaciona com a história da Dama de Shalott de forma importante, levando em conta que tudo que esta mulher tinha de conhecimento sobre o mundo externo era o que via através da moldura redonda de seu espelho, e que ela vai de encontro à morte quando resolve buscar, de forma impensada, o que seria a “vida real”.
Água
A simbologia da água é muito abrangente e basal, tanto na ótica de diversas correntes de ocultismo quanto na ótica da psicanálise. Representa as águas primordiais da geração da vida, o líquido do útero materno, o conteúdo disforme do inconsciente e a fluidez dos sentimentos. Também representa, na ótica da magia, o elemento que faz o contato entre os mundos, podendo ser usada para atrair ou repelir energias, ou em rituais de purificação. No contexto da obra analisada, a Dama se entrega a seus sentimentos, navegando por eles sem rumo definido, buscando apenas o cavaleiro que vislumbrou pelo espelho, e rumando para Camelot. A alegoria da dama que se entrega às águas está presente em vários mitos e obras literárias, e quase sempre relacionada a entregar-se aos sentimentos, como por exemplo Psiquê, exposta nas ondas de um penhasco à espera de seu futuro e monstruoso marido, Oxum, que em alguns contos se entrega às águas morrendo afogada (PRANDI, 2001), e Ofélia, que se mata afogada após ser rejeitada, na obra de Shakespeare.
Barco
O barco, enquanto instrumento criado pelos humanos, é o elemento que permite que se navegue nos sentimentos, porém no poema a Dama liberta as correntes e se deixa levar pela correnteza, simplesmente se entregando às emoções, e sem um objetivo ou um planejamento conscientes.
Figura de proa
As figuras de proa eram entalhadas nos barcos como forma de proteção, para guiar a viagem. Originalmente, tomavam a forma de mulheres, representando a Ânima, como guia no mar dos sentimentos, ou Sirenas, as figuras elementais aquáticas da alquimia. Posteriormente, tomaram a forma de dragões e monstros, que tinham como objetivo espantar os perigos e guiar a viagem em segurança. Na obra em análise, vemos uma versão estilizada de figura de proa, porém com o mesmo objetivo de guiar a viagem, embora a própria Dama tenha se entregado sem restrições a seu destino.
Salgueiro
O salgueiro é uma árvore de grande importância nos ritos de feitiçaria, e já era citado em lendas e costumes da época Helenística, estando sempre associado ao elemento água, à fertilidade e à morte. De fato, esta árvore cresce em solo alagado, principalmente próximo a rios e lagos, ou em regiões pantanosas. Na grécia antiga, galhos de salgueiro eram deixados próximo ao leito de mulheres que queriam engravidar, e jogados sobre os túmulos, em ambos os casos com o intuito de facilitar o intercâmbio de energias entre os mundos, seja trazendo uma nova vida, ou levando uma alma — o que também seria uma das funções da água em si, enquanto condutora universal. Em alguns rituais de bruxaria na idade média, o chá da casca do salgueiro era utilizado para induzir um estado de torpor e anestesia que, junto aos outros elementos do ritual, levava os participantes a terem visões e revelações. Muito posteriormente, o efeito analgésico da casca do salgueiro foi estudado cientificamente, sendo então isolado o ácido salicílico. O composto levou este nome devido à nomenclatura científica da árvore, e é usado até os dias de hoje como remédio para alívio da dor. Este aspecto de anestesia pode ser relacionado ao estado da dama ao buscar seu destino, quase em transe, e sem contato firme com a realidade.
Folhas
As folhas sendo levadas pela água podem ser associadas ao estado da Dama de Shalott, que se entrega a seu inconsciente e se deixa levar pela água sem ter certeza de seu destino. Esta imagem das folhas sendo levadas pela água é utilizada em várias canções com inspiração no imaginário medieval e Wicca, como Can You Understand, do grupo Renaissance: “flutuam sobre as piscinas congelantes folhas com rodopios e ondulações” (float across the icy pools leaves with curl and sway).
Andorinhas
O simbolismo das andorinhas está relacionado à segurança e à estabilidade, uma vez que ao serem avistadas indicavam aos navegantes que se aproximavam da terra firme. Sua presença ao lado esquerdo da pintura pode estar relacionada à perda do contato com a realidade, mas também ao simbolismo de transcendência próprio dos pássaros, e à conexão entre o consciente e o inconsciente (TASCHEN, 2012; JUNG, 1964).
Tapeçaria
A tapeçaria tecida pela Dama durante seu período de isolamento pode ser associada à trama do destino, que na mitologia nórdica e posteriormente grega era entendida como uma teia tecida por três fiandeiras — as Parcas, Moiras ou Nornes. É interessante ressaltar que os bordados presentes na obra são sempre em formato redondo, devido à moldura do espelho pelo qual a jovem observava o mundo externo. Dentre os bordados, encontram-se os cavaleiros, um dos quais, Sir Lancelot, a Dama decide procurar de forma impensada.
Cavaleiros
Os cavaleiros que aparecem nos bordados e que despertaram o interesse da Dama personificam a jornada do herói, sendo alvos da devoção de jovens por terem enfrentados perigos diversos em defesa do reino. Sir Lancelot, especificamente citado no poema, está presente em outras histórias, salvando donzelas do submundo, com clara inspiração orfeica, e mesmo buscando o Santo Graal.
Velas
As velas se inserem no quadro como elementos de devoção e de contagem do tempo, se esvaecendo como a vida da Dama de Shalott. Na obra em questão, das três velas apenas uma está acesa, indicando que a vida se esvai, ou então que ela ainda está no primeiro estágio da vida, enquanto jovem virginal, uma vez que também nos ritos Wicannos o número 3 está intimamente relacionado com as três fases da vida da mulher — virgem, mãe e anciã.
Crucifixo
O crucifixo é outro elemento de devoção presente no quadro, e também pode se relacionar à comunicação entre a terra e o céu, ou ao sacrifício, uma vez que neste também se encontra a figura de Jesus. A jovem se sacrifica em prol de seu amor e sua devoção, ao mesmo tempo em que desce da torre em direção à terra, o que fará com que ela pereça e faça uma outra viagem em direção aos céus.
Corrente
A soltura da corrente pode ser entendida como a perda de conexão com o mundo físico, quando a jovem se lança, em seu barco apinhado com itens de extrema importância sentimental para si, em seu próprio inconsciente, o que lhe causará a morte.
Túnica
A túnica branca é geralmente associada a donzelas virginais, incorporando o aspecto de pureza e o caráter de imaculada da Dama. Já os detalhes dourados, assim como seu colar, podem estar relacionados à fertilidade, à juventude, e à vaidade. Dourado é também a cor de Oxum, associado à mesma tanto pela presença de ouro nos rios regidos por ela, quanto pelo caráter da juventude e da vaidade deste Orixá.
Ass: RoYaL.
Referências: PRANDI, Reginaldo (2001), Mitologia dos Orixás; TASCHEN (2012), O Livro dos Símbolos; JUNG, C.G. (1964), O Homem e Seus Símbolos.