A Pólis Grega e as Relações entre Estado e Alma em Platão

Filosofia e Magia — Capítulo 02

Projeto Xaoz
8 min readJan 31, 2020

Neste segundo ensaio iremos abordar um pouco da teoria política de Platão, presente no livro IX da República, onde o autor descreve quatro tipos de Estado (Aristocracia, Timocracia, Democracia e Tirania) e associa cada um deles — através da analogia que expusemos no ensaio anterior, a um tipo específico de alma que caracterizaria o indivíduo peculiar a cada um desses quatro tipos de Estado, frisando a relação entre as Leis Herméticas e a teoria proposta.

Antes de mais nada precisamos nos situar historicamente e entender todo o contexto que cercava Platão em seu tempo, afinal como afirma a máxima hegeliana que cunhou o termo“zeitgeist”- e, aplicando esta para o estudo da filosofia: para se compreender o pensamento de um filósofo devemos ter uma total compreensão do “espírito do tempo em que este viveu, e para isso devemos tentar captar e buscar compreender todo o clima intelectual e cultural de sua época. Portanto, para compreendermos a obra e os conceitos criados por Platão sobre política e os tipos de Estado devemos voltar à Atenas no período clássico e tentar nos transportar para lá como se fizéssemos parte daquele contexto social e cultural.

Vamos nos permitir viajar mentalmente ao auge do período clássico grego, exatamente no século V a.c. onde a democracia ateniense prosperava como a expressão máxima de uma civilização que conseguiu criar uma nova forma de se encarar a cultura e a política, que conseguiu resolver seus problemas internos de uma forma dinâmica, se lança ao mar e às conquistas e a vitórias nas guerras dão início a um período de paz e prosperidade.
Para isso iremos recorrer à obra comentadores Werner Jaeger e François Chatelet antes de traçarmos nossa análise da obra platônica propriamente dita.

“Os diálogos platônicos não podem ser desligados do tempo em que os viu nascer; a conjuntura histórica é aqui determinante. Destacá-los desse contexto, fazer deles uma das primeiras manifestações do espírito eterno, é condenar-se a nada compreender de sua originalidade e dessa forma que lhes permitiu atravessar a história” (Chatelet - História da Filosofia Pagã p.66)

Portanto,o modelo democrático ateniense penetra nos costumes e desmistifica a cultura grega, acolhendo a racionalidade como ponto principal de seu modus operandi . Nasce a narrativa histórica, preocupada não mais com a mitologia ou com os fatos heróicos, mas com o relato imparcial do que realmente aconteceu em determinado evento, determinando suas causas e consequências. A arte, a medicina e a ciência se libertam do dogmatismo religioso das cosmogonias e teogonias, libertando-se das proibições religiosas e passa -se a aceitar os discursos e estudos empíricos, aceitando inclusive obras renegadas de outras cidades-estado. Tais avanços dão origem ao um novo domínio de reflexão:

“Desenvolve-se paralelamente a análise de estilo teórico: contra as cosmogonias e as teogonias, instauram-se investigações que visam descobrir princípios de explicação “realistas” e que nada mais tomam da interpretação religiosa tradicional. A lógica do discurso já começa a se sobrepor a simbólica de invocação. Os deuses se humanizam e, saindo das criptas onde eram mantidos pelos delegados ao culto, se oferecem aos raios do sol e aos olhares do povo.(…) O mundo profano das energias sociais interfere agora com o universo dos poderes sagrados.” (Chatelet p. 68)

E por último, cria-se um novo molde para a educação, que passa a ter a preocupação em formar um cidadão que se dedique aos assuntos da pólis, que saiba argumentar e explicar suas decisões na assembleia com desenvoltura e clareza, passa-se a dar imenso valor à retórica e a capacidade de se formar cidadãos que saibam não apenas cuidar das atividades domésticas, mas que saibam também falar em público.

Acontece que, por outro lado, a democracia grega somente se aplicava aos homens livres nascidos em Atenas, portanto excluindo a maioria da população da cidade composta por mulheres, estrangeiros e escravos. A democracia não se trata da “força do povo” e sim da extensão da cidadania a todo homem livre, trata-se de incluir os atenienses mais pobres, é a igualização da condição de cidadão a todos, quaisquer que seja sua renda, e isto ocorreu justamente porque no tipo de governo anterior, que era comandado pelos cidadãos de maior renda, os cidadãos pobres se rebelaram e os “bem nascidos”, a partir da perspectiva de justiça de Dracon e Sólon, foram obrigados a dividir seus privilégios com os demais cidadãos. Porém o elitismo excludente de mulheres, estrangeiros e escravos foi o germe de inúmeras injustiças que enfraqueceram Atenas e a levaram a ser dominada pelas tropas de Filipe da Macedônia no final do século V. Destas injustiças, a que alcançou maior notoriedade foi o julgamento e execução de Sócrates a partir de uma denúncia capciosa de que este era responsável pela corrupção da mente dos mais jovens. O que ocorreu na verdade foi que as pessoas se incomodavam com o método filosófico socrático e resolveram dar um fim neste, uma vez que tal método ameaçava o status quo da Pólis.

Platão viveu aproximadamente 80 anos e viu o apogeu e a queda ateniense, marcado por um tremendo desgosto perante essas injustiças. A gloriosa civilização que criou obras primas e elevou a cultura, agora se volta contra si própria. A derrota de Atenas, a morte de Sócrates, as guerras — que recomeçaram com Atenas derrotada. Um clima de vergonha, desonra e derrota passa a assolar a cidade, que fica vulnerável a dominação determinando o fracasso da democracia de Atenas.

Logo, podemos perceber que a obra de Platão vem à luz sob o artífice de um autor desiludido e desgostoso das injustiças democráticas, revoltado e inconformado com a morte injusta de seu mestre e amigo.

Diante deste cenário de decadência Platão conclui que assim como um corpo físico, o corpo político está doente, estabelecendo uma relação com a medicina que será essencial para o desenvolvimento de sua análise dos tipos de Estado.

O influente teórico alemão Werner Jaeger em sua Paidea pode muito bem nos elucidar sobre esta importante relação entre as duas áreas e como Platão as utilizou para a política e para a educação. Segundo ele a busca de Platão por uma forma perfeita de Estado nos leva, a partir da dicotomia entre justiça e injustiça, à forma defeituosa de Estado. Platão então junta as formas mais conhecidas de Estado de sua época e traça uma tabela de valores de acordo com seu conceito de justiça até o que ele entende como sendo o Estado perfeito. E nesse caso o filósofo político se pareia com o médico, pois deve buscar a partir deste parâmetro quais seriam as formas de “cura” de uma forma de Estado “deficiente”, utilizando a ética e a eudaimonia como parâmetro ou “remédios” para desempenhar tal façanha. Segundo Jaeger:

O filósofo não aparecia (…) como um simples teórico do valor, mas sim Na República põe-se em evidência a importância fundamental que tem para Platão este paralelismo entre a Medicina e a política. Baseia-se na premissa, sistematicamente elaborada na obra, de que o objetivo de toda a comunidade humana é conseguir o máximo de desenvolvimento da alma do indivíduo, isto é, educá-lo para fazer dele uma personalidade humana completa. O objeto da política, tal como o da Medicina é a natureza humana (physis). (JAEGER p.926)

Portanto, o indivíduo deve se aspirar ao justo, que segundo a lógica platônica seria o são, pois para Platão a natureza da alma é boa. A maldade por ser contrária a natureza da alma seria, portanto, ruim, e aquilo de que o indivíduo deve se afastar. E assim como a medicina procura manter o corpo são, assim também deverá a política em relação ao Estado.

Platão então classifica os quatro tipos mais conhecidos de Estado de sua época: A oligarquia, a timocracia, a democracia e a tirania, modelos de governo que surgem em consonância com as virtudes ou desvirtudes das almas encontradas em uma determinada Pólis.

Para Platão aquilo que é geral para o Estado também influi na physis do inidvíduo,assim como é dito na Lei Hermética da Correspondência aquilo que está em cima é análogo àquilo que está embaixo; assim como o que está fora é análogo ao que está dentro, sendo, então indissociáveis as práticas e valores individuais da obtenção da eudaimonia.

A autoanálise pessoal que tal lei propõe, sob a luz do pensamento platônico, estimula a reflexão sobre qual o papel do indivíduo, do eu, dentro da manifestação coletiva da realidade política e social do país. Platão propõe nos livros VIII e IX da “República” a hipótese de que o modelo de Estado vigente responde analogamente ao tipo de alma predominante de seus habitantes, o Estado como expressão macro da realidade micro individual.

A escolha do Daemon pessoal de cada ser humano antes de seu nascimento liga cada um ao seu destino, estimulando o desenvolvimento, ou não, das virtudes através do elo da necessidade. Platão defende que é apenas através do estudo da filosofia e do desvencilhamento da alma perante às sensações e impressões do corpo que, diante dos desafios impostos pela necessidade, pode-se aspirar ao desenvolvimento do Eudaimon pessoal, e assim, consequentemente, à materialização de uma Polis baseada na eudaimonia.

Sobre os tipos de Estado trataremos no próximo texto, por ora nos resta analisar que a execução da timocracia, oligarquia, democracia ou tirania acontece não pelas leis criadas e definidas pela sociedade, como se fosse um fator externo e desassociado das posturas pessoais, mas como um desmembramento das tendências da população, que decide ou não, acatar ou subverter a ordem estabelecida, assim como o próprio estabelecimento das leis responde aos interesses dos homens. E, em casos de subversão das mesmas, as variedades de transgressões comunicam-se com os tipos de alma expostos na teoria platônica, num ciclo de automanifestação coletiva cuja saída exige uma cuidadosa autoanálise que perpassa as paixões, impulsos, ética e até mesmo a esfera onírica.

Por: Fernanda Surati e Wander Segundo.

--

--

Projeto Xaoz
Projeto Xaoz

Written by Projeto Xaoz

Este projeto visa compilar, analisar e desenvolver as bases do conhecimento de sistemas mágicos. Leia mais em: www.xaoz.com.br

No responses yet