Culpa e Dogmatismo Cristãos

e sua relação com Bruxaria, Magia e Misticismos

Projeto Xaoz
11 min readAug 6, 2018

Uma questão recorrente para as pessoas que circulam entre os diversos meios místicos são as figuras da “bruxa boa”, da “magia branca” e do “mago sábio”, todas recorrentes entre pessoas que buscam de alguma maneira “desestigmatizar” práticas mágicas na contemporaneidade.

Entretanto, tanto pelos interlocutores dessas pessoas quanto pelo próprio meio social da sociedade em que se inserem, dialogam com categorias morais fundamentalmente cristãs. Sim, você tira o bruxo do cristianismo, mas não consegue retirar o cristianismo de vários bruxos. Obviamente, a sociologia e a psicologia têm contribuições bastante esclarecedoras para entender esse processo, onde a moral cristã que nos alimenta com as definições fundamentais de bem e mal, certo e errado, aprovável e reprovável continua formando e definindo aqueles que decidem virar as costas para a religião hegemônica em busca de novas espiritualidades.

Imagem: Vittore Carpaccio — O leão de São Marcos.

Entretanto, esse não é o foco central do argumento. O que quero discutir e demonstrar é que ainda que existem elementos inconscientes que interpelam os sujeitos, e que a escolha por uma seara mágica inclui um esforço para explorar não apenas uma nova consciência de divino e de sobrenatural como também um novo aspecto do ser, seja como sujeito, como indivíduo ou como eu. Dessa forma, o caminho de descida ao mundo interno (“inner world”) traz contribuições bastante valiosas para separar os elementos não compatíveis de nossa nova crença com os elementos que a acabamos mantendo do mundo externo (“outer world”) e tem dificuldades de se descolar.

Falo como pagão, mas acredito que tais contribuições possam agregar novas perspectivas de autoconhecimento para caoístas, thelemitas, wiccanos, asatruar, reconstrucionistas e várias outras espiritualidades não-cristãs e que podem colaborar para a superação do habitus da sociedade constituída por uma hegemonia cultural e ideológica cristã. Vários elementos que vamos abordar são observados exclusivamente em religiões monoteístas, como caridade compulsória, proselitismo, dogmatismo e maniqueísmo, elementos estes que deveriam ser descartados por qualquer não-monoteísta.

Fazer o Bem? A quem?

Ainda que não contemple parte das espiritualidades e correntes mágicas modernas, que são bastante focadas no individualismo alimentado pelo cristianismo protestante e também pela ideia de salvação por boas obras do catolicismo, destaco também a importância de uma visão mágica, física e metafísica baseadas em um paradigma holístico em oposição ao que já temos consolidado pelos cristianismos no nosso imaginário de bem e mal, algo que torna a prática mística tão centrada no microcosmos do magista que muitas vezes esta falha em contemplar o uso e a transição de elementos no macrocosmos.

Exemplifico isso como o conceito de “fazer o bem” ou “fazer caridade” que vemos entre católicos, espíritas e umbandistas, que falha em entender que um ato de efeito positivo no microcosmos pode gerar uma sucessão de atos de efeito negativo numa dimensão macrocósmica. Nesse aspecto, ainda que no microcosmos só consigamos mensurar os efeitos diretos de um determinado ato “bom” ou “ruim”, no macrocosmos a escolha pela boa ou pela má decisão vai parecer muito mais com um dos dilemas éticos onde você precisa decidir se salva alguém conhecido ou várias pessoas desconhecidas de serem atropeladas por um bonde em alta velocidade.

Imagem: Vittore Carpaccio — Apresentação da Virgem no templo.

Várias fábulas medievais europeias contam sobre pessoas que por sua natureza bondosa vivem em situação miserável, e todas as vezes que um determinado poder superior tenta oferecer algum tipo de ajuda, normalmente joias valiosas, escondidas em alimentos e animais como bolos, peixes e galinhas, a necessidade de “fazer o bem” impede que essa pessoa seja capaz de fazer uso dessas bênçãos sobrenaturais, e assim ela acaba inconscientemente passando a sua “sorte” para pessoas que não farão uso honesto dessas riquezas e poderes.

Por isso, a primeira reflexão que eu convido todos a fazer é que observem o quanto a necessidade e senso de dever de ajudar outras pessoas tem gerado “ciclos virtuosos”, onde a boa sorte se converte em uma cascata que se distribui da pessoa ajudada para outras pessoas, ou se esse tipo de auxilio, ainda que bem-intencionado, alimenta um tipo de “ciclo vicioso”, no qual ajuda alimenta todo tipo de comportamento negativo da pessoa auxiliada para outras pessoas.

Nesse momento, trago como primeira reflexão o significado da runa Fehu, que coloca que a fortuna (tanto no sentido de riqueza como de boa sorte) é e deve servir de conforto a toda humanidade, ainda que quem decida sobre a aplicação desses recursos seja o seu portador, e a prudência e sabedoria da decisão é requisito para aqueles que desejam proximidade de Odin.

O inferno está cheio de boas intenções

Como complemento, rememoro um filme com ambientação medieval que muita gente deve ter se esquecido, mas que tem uma lição valiosa sobre as escolhas sobre quem e quando ajudar e os preços pagos por decisões equivocadas. Coração de Dragão (Dragonheart) conta a história de um príncipe à beira da morte que graças à ajuda da rainha sua mãe e do campeão de seu reino buscam um dragão poderoso capaz de salvar a vida do convalescente.

  • A dádiva miraculosa? Metade do coração do dragão, que salvaria a vida do príncipe, mas o colocaria conectado para sempre com o dragão.
  • O preço? O príncipe deveria ser um rei bom e justo.
  • O que aconteceu? Ao salvar o príncipe, ele acaba por se converter em um rei tirânico, o campeão do reino acredita que a culpa dos males feitos pelo príncipe era o coração draconiano, e por isso inicia uma cruzada para aniquilar toda a espécie.
Imagem: Vittore Carpaccio — São Jorge e o Dragão.

Ainda que os dois exemplos sejam uma extrapolação de fatos levados ao extremo, quantas vezes as pessoas não acabam sendo vilificadas por aqueles que mais ajudaram? Quantas vezes ajudas e dádivas não acabam alimentando vícios e comportamentos negativos da pessoa ajudada e criam mais e mais ações negativas em escala? É um dilema que no fim coloca aquele que auxilia em uma posição de culpa, seja por ter negado a ajuda, ou por haver ajudado alguém que no fim utilizou o que recebeu de maneira negativa. Isto torna necessária uma avaliação racional antes de decidir quem ajudar, de que maneira e quais os efeitos positivos e negativos dessa ajuda.

Veja, não estou dizendo que tenhamos que parar de fazer caridade; mas, misticamente, caridade é uma maneira de gerar impactos e modificações no mundo que nos circunda. Com isso, é importante que uma prática como essa, analisada como uma extensão material de nosso potencial mágico, seja competente em construir o mundo que queremos e não apenas um ato mecânico e compulsório. Magia envolve razão, vontade e emoção, que aplicadas a uma determinada direção ou situação podem resultar em impactos reais e efeitos colaterais indesejáveis (e alguns, ainda que desejáveis, podem não ter sido intencionais). Então, se o interesse de pessoas ao realizar caridade é criar efeitos benéficos na vida de outras pessoas, por que não atentar para os efeitos colaterais e desdobramentos possíveis, da mesma maneira que qualquer outra prática mágica?

Vem cá ver isso, você tem que experimentar

Uma coisa recorrente no mundo místico é a pessoa que se encontra em determinada prática ou tradição e passa a todo momento a dizer o quanto aquilo que ela pratica é bom e o quanto aquilo que as outras pessoas praticam é inferior. A pessoa teve uma experiência positiva, e com isso se sente na obrigação de que com isso tenha que atrair outras pessoas para aquela prática ou tradição, com o efeito de compartilhar a “boa nova”. Isso tem criado toda uma geração de “magistas convertidos” que ao encontrarem um novo caminho espiritual acabam se tornando inconvenientes e até mesmo violentos e agressivos com outras tradições e práticas, sobretudo aquela da qual a pessoa saiu. Não é incomum ver ex-cristãos, ex-wiccanos ou ex-espiritualistas que se encontraram em algum caminho esotérico, mágico ou pagão, serem vistos desdenhando da crença anterior e fazendo propaganda de quão infeliz era a vida pessoal na crença anterior ou do quanto a crença anterior era limitada, míope ou caricata.

Imagem: Vittore Carpaccio — O batismo dos Selenitas.

Esse “proselitismo do neófito”, que se vê obrigado a expor aos quatro ventos a importância da nova crença, chega muitas vezes a beirar a apostasia. Uma religião como o Cristianismo e o Islã, que entendem que só existe uma verdade e uma “boa nova” que deve ser levada a todos, e que no obscurantismo de uma “crença falsa” ou “espiritualidade limitante” só essa “boa nova” vai resgatar a humanidade para a “Verdade”, pode até ser compatível em uma crença monoteísta, mas infelizmente precisa e deve ser abandonada em uma mágica e espiritual que envolve o microcosmo e o macrocosmo. Não vai ser combatendo, difamando ou inferiorizando a religião ou tradição da qual você fazia parte ou trazendo mais adeptos para sua nova tradição que você realizará um caminho mágico proveitoso. O mesmo vale no caminho inverso, quando a conversão é para uma crença dita mais liberal, mas que pode incitar comportamentos tão apostáticos quanto as primeiras.

Um bom iniciado que encontra sucesso em uma determinada religião, tradição ou sistema mágico ou espiritual deve aproveitar esse momento em que o seu desenvolvimento flui de maneira pujante para encontrar aquilo que estava dentro de si que limitava sua realização, em todo potencial em uma outra crença ou linhagem. Isto porque é indubitável que em todas as tradições e religiões existem aqueles que tiveram a capacidade de levar o seu potencial ao máximo; logo, o fato de determinado sistema não ter proporcionado isso não necessariamente anula o seu potencial.

Quero frisar aqui que essa conjugação de proselitismo e apostasia diz tão somente respeito aos casos em que determinado indivíduo se desvincula de um grupo ou crença por entender que esta não era compatível com seu desenvolvimento pessoal. Em nenhum momento quero anular o fato de que existem pessoas que por terem sido vítimas de abusos (sejam psicológicos, financeiros, físicos ou sexuais) dentro de um determinado grupo e que saem destes acabam alertando o tipo de armadilha ou cilada em que caíram.

Ser vítima de abusos em um espaço que supostamente deveria proporcionar acolhimento e desenvolvimento espiritual é diferente de apostasia e convenhamos que magistas de mau-caráter devem sim ser expostos para evitar que criem novas vítimas. Esse parêntese é bastante importante, já que infelizmente todo tipo de charlatão e aproveitador pode ser bem-sucedido em criar um grupo, tendo seguidores que acabam bem-sucedidos em sua jornada espiritual, muitas vezes mais pelo seu próprio mérito do que pelo orientador.

Tá fazendo errado, tem que fazer assim, olha: igual no livro

Imagem: Vittore Carpaccio — Visão de São Agostinho.

Outra coisa que vem se tornando recorrente é que nesse grande universo de práticas mágicas se observa um sólido movimento de algumas pessoas pela ortodoxia da tradição. Se o autor do Sistema A desenvolveu tal prática mágica, ritual ou meditação de determinada maneira há 200, 300 anos atrás, é assim que tem que ser feito, sem margem para a interpretação ou adaptação.

“Se tá escrito que tem que ter um sinete de ouro, não me venha com essa joia banhada; se está escrito sebo de carneiro, é sebo de carneiro; se precisa usar mandrágora e não tem, não faz a droga desse ritual”.

É comum que, em qualquer tipo de linhagem de pensamento, místico ou não, com o passar das décadas ou dos séculos alguns praticantes façam adaptações e concessões a determinados requisitos da tradição original. Isso é um processo natural onde os praticantes, ao exercitarem determinados rituais, experimentam trocar, adicionar ou subtrair determinado elemento exigido originalmente, e ao transferir para seus aprendizes e discípulos já ensinam as modificações ao invés de enfatizar a tradição originária.

Depois de algum tempo, a diferenciação entre a tradição e alguns de seus praticantes se torna tão gritante que aqueles que reproduziram a mesma tradição sem qualquer alteração passam a não reconhecer mais o outro grupo como seguidor da mesma vertente. Esse racha entre os heterodoxos, que seguem versões modificadas de determinada tradição, e os ortodoxos, que reproduzem ela sem qualquer tipo de adaptação, abre espaço para a atuação recorrente de comportamentos dogmáticos e intransigentes. E se engana quem acha que são apenas os ortodoxos que têm comportamentos dogmáticos. Muitas vezes são os heterodoxos que, por considerarem os ortodoxos retrógrados ou atrasados, tentam impor sua própria leitura da tradição como oficial e válida.

Essas disputas recorrentes expõem a tendência de diversos magistas de tomarem como obrigatório determinado elemento teórico ou ritualístico a todos os praticantes, pressupondo ignorância, inocência ou incompetência daqueles que não o seguem, independentemente do tempo de experiência e dos resultados auferidos por aqueles criticados.

Imagem: Vittore Carpaccio — O martírio dos peregrinos e o funeral de Santa Úrsula.

Certo e Errado: Bem e Mau ou Bom e Mal?

Se tornou corrente entre vários praticantes de magia a “vilificação” de diversas práticas mágicas, muitas delas consideradas como “imorais” ou “malignas”. Entretanto é importante destacar que essas práticas, sendo desenvolvidas em um sistema mágico diverso, podem no máximo ser consideradas “antiéticas”, e assim é completamente equivocado medir ou julgar determinado magista por uma moralidade que não está inserida no sistema mágico ou religião praticada por este e assim recair em um maniqueísmo que separa sem margem negociação, sem zona cinzenta.

Um exemplo bastante repetitivo dentro dos meios místicos ocidentais é o tratamento dado ao próprio cristianismo, que em vez de ser tratado como um sistema ou tradição incompatível (total ou parcialmente) com a visão mágica de seus críticos passou a ser encarado como um Mau absoluto que precisa ser suprimido, e tudo aquilo que foi tocado pela tradição cristã é passível de ser descartado como fruta podre.

Em alguma medida a postura de resistência aceitável, racional e razoável para com a institucionalidade da Igreja Católica (e no caso brasileiro, também do movimento neopentecostal), que, sobretudo por conta das Cruzadas e da Inquisição, reverberou para outras tradições mágicas e místicas relacionadas ao cristianismo. Na prática se relembram do “combate a bruxaria”, mas ignoram que a grossa fatia dos condenados nos tribunais do Santo Ofício eram “cristãos heréticos” como cátaros, neoplatônicos e posteriormente protestantes, além de católicos praticantes acusados por histeria coletiva ou por interessas financeiros, e dentre os não cristãos os judeus, sendo assim muito mais uma disputa de interesses políticos e econômicos do que uma efetiva caça aos praticantes de magia.

Imagem: Vittore Carpaccio — São Jerônimo e Leão em Monastério.

Como contraexemplo, há um trato não-maniqueísta com as crenças que não professamos, encontrado dentro do judaísmo. Acredita-se que um judeu deve cumprir todas as 613 leis da Torá, algumas destas éticas e outras morais, para ser considerado justo e ter um lugar no “mundo que virá” (HaOlam HaBa), mais justo que o atual. Já os gentios (não-judeus) são regidos por um corpo bem mais flexível de leis, as leis de Noé ou pacto de Noé, com apenas 7 regras, que ao serem cumpridas garantem o status de “justo”. Logo, apenas regras éticas, comuns para garantir o bom convívio nas relações, eram exigidas daqueles que não professavam o judaísmo, sendo a moral judaica apenas aplicada aos judeus.

O cenário místico e mágico é plural de tal maneira que o maniqueísmo é inconcebível em um espaço de troca e boa convivência. Você não pode nem deve exigir do outro a concordância com uma moral única e universal, sobretudo quando critica ao outro por impor o mesmo, muito menos vilificar a pessoa pela moral que professa.

Podem-se e devem-se exigir normas de respeito e boa convivência, que garantam o respeito e preservação dos espaços de cada grupo e visão, sem, no entanto, imputar dogmas ou agir através de proselitismo com aqueles que não compartilham sua visão religiosa, mágica e espiritual.

Por: Ghaio Nicodemos

--

--

Projeto Xaoz
Projeto Xaoz

Written by Projeto Xaoz

Este projeto visa compilar, analisar e desenvolver as bases do conhecimento de sistemas mágicos. Leia mais em: www.xaoz.com.br

Responses (1)