Etnociências

E as Sinergias entre Magia e Ciência

Projeto Xaoz
11 min readMay 23, 2019

Etno, do grego éthnos, grupo de pessoas que vive em conjunto; povo, etnia, comunidade, sociedade, cultura.

Ciência, do latim scientia, “conhecimento”; stricto sensu, refere-se ao sistema de adquirir e organizar conhecimento baseado no método científico.

As etnociências são definidas como os campos de estudo que utilizam o arcabouço sistemático do método científico contemporâneo para estudar conhecimentos tradicionais. Em outra definição, são simplesmente os arcabouços de conhecimento usados pelas culturas tradicionais (Augé, 1999). É um campo de estudo relativamente novo, da década de 50, que tem ganhado importância em anos recentes com as preocupações socioambientais, bem como as tentativas de redução de emissões de gases de efeito estufa buscadas por diversos países no mundo inteiro.

Imagem: Cyberamazona, por J. Queiroz.

Esta denominação específica é tão recente que sua própria definição não é consolidada e única, podendo ter maior foco no método científico (Atran, 1991) ou então na compilação antropológica das culturas que embasam o estudo (Ingold, 2000). Há consenso, porém, de que é um campo transdisciplinar de estudos, uma vez que os conhecimentos das ciências sociais se aliam às ciências exatas explorando suas sinergias e gerando um corpo de conhecimento único e coerente. As subdivisões da etnociência também não são oficiais, embora estejam começando a tomar forma.

Retorno ao Tradicional

Os campos etnocientíficos foram impulsionados nos anos recentes em face de uma tendência bem simples: o retorno ao tradicional, ao que um dia foi considerado ciência, mas posteriormente foi denominado como magia, esoterismo, simpatia ou superstição. Após a segunda guerra mundial, a Alemanha se especializou na produção de compostos químicos sintéticos, se tornando uma potência mundial no campo da química orgânica e inorgânica. Métodos complexos foram desenvolvidos mundialmente para replicar estruturas químicas encontradas na natureza, como a condensação Diels-Alder, o processo Fischer-Tropsch, a adição Friedel-Crafts, a redução Clemmensen, entre tantos outros.

Imagem: 6 da manhã em Nova São Paulo, por J. Queiroz.

O advento do petróleo ao redor de todo o mundo também incentivou o desenvolvimento de produtos petroquímicos, plásticos e borrachas, bem como outros combustíveis fósseis (carvão, óleo e gás). Na medicina, novos fármacos proliferaram, e cada vez que se descobriam efeitos colaterais, novas versões dos remédios eram desenvolvidas (fármacos de primeira, segunda, terceira gerações). As cidades, por sua vez, evoluíram seguindo modelos padronizados, principalmente o americano, com zoneamentos separados por atividade (residencial, comercial, industrial, lazer) e grandes avenidas conectando-os. No campo da física, experimentos cada vez mais complexos comprovavam as teorias de constituição do universo, conhecendo-se os níveis subatômicos com precisão cada vez maior.

Mas, a partir de certo momento, a evolução nestas áreas começou a apresentar desgastes. Percebeu-se que químicos sintéticos poderiam causar alergias e outras doenças, e sua produção gerava muito resíduo. Os plásticos começaram a se tornar um passivo ambiental enorme com longo tempo de degradação. Os fármacos continuavam apresentando efeitos colaterais, mesmo após várias gerações de aprimoramentos. As avenidas começaram a ficar engarrafadas com um fluxo cada vez maior entre as zonas. A física quântica e a relatividade mostraram que a ciência clássica deveria se tornar probabilística para continuar evoluindo.

Imagem: Amazofuturismo, por J. Queiroz.

Então, começaram a ser analisados com mais afinco os conhecimentos tradicionais, e elementos de diversas etnias passaram a ser utilizados em combinação com os métodos científicos. Compostos extraídos diretamente de plantas requeriam menos etapas de conversão e síntese. Começaram-se a buscar matérias primas abundantes em cada local para substituir derivados de petróleo e combustíveis. Observou-se que fitoterápicos tinham menos efeitos colaterais, e poderiam ter efeito farmacológico similar aos fármacos caso fossem extraídos e concentrados. Cidades organizadas de formas diferentes (por exemplo, alternando residências, comércio e lazer) eram mais eficientes e traziam um maior bem-estar, e os resultados da física quântica dependiam do observador, como os antigos sempre disseram. O próprio conceito de desenvolvimento das sociedades passou a usar critérios de bem estar social além dos puramente econômicos que vinham sendo considerados anteriormente (LA ROVERE, 1990).

Etnobotânica e Etnozoologia

Em muitas mitologias milenares, são mencionadas plantas desconhecidas com poderes milagrosos e também animais já extintos. Estes seres vivos podem contribuir muito para o entendimento da evolução, pois seriam galhos interrompidos na árvore genealógica dos seres, ou mesmo elos perdidos na corrente evolucionária. O caso do pássaro Dodô é clássico pois este animal foi extinto já após a humanidade ocidental ter começado a organizar as ciências da forma que é utilizada hoje, mas muitos animais e plantas ainda são acessíveis apenas por meio de mitologias.

Imagem: elefante medieval — a espécie evoluiu ou os artistas não souberam representar?

Um exemplo interessante de animal desconhecido atualmente e presente na mitologia egípcia é o Animal Set, uma espécie de canídeo com orelhas altas e quadradas e um focinho proeminente, representado em diversos murais no Egito. Para alguns pesquisadores, seria um animal com resquícios de tromba (como as antas) extinto já nas dinastias mais recentes, uma vez que sua própria iconografia começou a ser substituída por um asno ou outras formas nos murais mais tardios (LANSBERRY, S/A). Para outros, seria uma representação deturpada de um lobo ou chacal do deserto. Nos papiros egípcios também são citadas diversas plantas que não foram encontradas por pesquisadores de botânica até os dias atuais.

Imagem: árvore da vida egípcia, ainda sem consenso de qual espécie se trata (Acácia, Tamareira e Sicômoro estão entre as opções discutidas atualmente).

Etnoastrologia

A Astrologia e a Astronomia eram uma só até certo ponto da história da humanidade, quando então a Astrologia passou a cobrir os campos psicológicos e espirituais da matéria e a Astronomia os campos mais exatos que concernem ao posicionamento planetário. Nos anos mais recentes, com a proliferação de métodos estatísticos para validar ou refutar análises que não precisam necessariamente seguir o método científico (baseadas em Big Data), estes dois campos inclusive começaram a entrar em choque. Cientistas realizaram análises estatísticas sobre uma versão incompleta/simplificada de Astrologia conhecida como Horóscopo e disseram ter comprovado que a Astrologia não funciona (FRAKNOI, 2010).

Imagem: texto sagrado de astrologia do povo Ersu que vivia próximo ao Tibet.

De qualquer forma, levando para o campo menos combativo e mais colaborativo, as descrições astrológicas da antiguidade têm ajudado a entender melhor o funcionamento do universo e a história da Terra. Descrições medievais de luzes caindo do céu puderam ser relacionadas a Meteoros (MCBEATH e GHEORGHE, 2007), a presença de ferro e vidro com características singulares na arte Egípcia permitiu que fosse rastreada a queda de meteoritos, e observatórios encontrados em locais de poder deram uma pista de quais constelações e corpos celestes eram importantes para marcar os festivais e passagens do tempo.

Imagem: observatório do Calçoene, no Amapá, Brasil.

Até os dias atuais, observatórios astronômicos vêm sendo descobertos em locais onde não se pensava que a humanidade já tivesse uma astrologia bem desenvolvida, como por exemplo no Amapá, Brasil (CABRAL e SALDANHA, 2008). A imagem dos povos tradicionais tem se alterado, passando de primitivos para altamente tecnológicos — com sua própria linguagem e com uma tecnologia direcionada para seus próprios objetivos.

Etnoquímica Inorgânica

A química inorgânica tem como base os compostos que não são produzidos principalmente por seres vivos, ou seja, que surgem no subsolo, nos oceanos, na atmosfera, em corpos externos ao planeta (ex: asteroides), aqueles de origem mineral, ou compostos sintéticos. A alquimia medieval desenvolveu diversas técnicas e processos para lidar com estes compostos (vide Processos Alquímicos), além de técnicas avançadas de mineração e metalurgia para obter e trabalhar com metais e ametais, mas em tempos recentes a arte alquímica passou a contemplar apenas os eventos a nível psicológico e espiritual relacionados à prática, enquanto a química inorgânica passou a tratar dos fenômenos físicos e materiais relacionados.

Imagem: pigmento índigo feito da árvore africana indigofera tinctoria; azurita; corante azul feito pelos egípcios em 3.000 AC a partir de cobre, areia e natrão.

Um dos campos mais fascinantes da química inorgânica, e que tem grande relação com os conhecimentos tradicionais, é o dos corantes e pigmentos. Como a arte surge junto com a humanidade, é de se esperar que os instrumentos artísticos tenham evoluído desde então, portanto existem alguns milênios de saberes acumulados nessa área por povos de todo o planeta. Cada região tem vocação para suas próprias matérias primas, o que multiplica o número de possibilidades de se fazer cada cor. A indústria alemã Merck, fundada em 1668 e existente até hoje, reinventou a química dos corantes e desenvolveu diversos compostos sintéticos, alguns por acidente (BODDY-EVANS, 2018). Muitos, porém, se mostraram altamente tóxicos, como por exemplo as tintas a base de chumbo que causaram a morte prematura de pintores.

Imagem: Jhon Bermond, Reisado do Catimbau.

Por isso, em tempos mais recentes, a humanidade tem buscado retomar os corantes naturais e entender como cada povo fazia cada cor, em busca de produtos que necessitem menos etapas de síntese, sejam menos tóxicos e causem menor impacto ambiental. O Projeto Arte da Terra, de Jhon Bermond, é um exemplo dentre muitos. Viajando pelo Brasil inteiro, o artista coleta e cataloga novas cores para usar em suas obras, e dá oficinas de como extrair pigmentos naturais para uso em pintura. Existem também estudos científicos que se baseiam em técnicas de espectrometria para melhor estudar os pigmentos, ou mesmo descobrir as cores originais de estátuas que hoje são brancas pelo desgaste, além de estudos com foco em extrair corantes naturais da forma mais eficiente possível.

Etnoquímica Orgânica e Etnomedicina

A transição da alquimia e do xamanismo para a química orgânica foi mais suave do que a da alquimia, pois se observa uma evolução consistente e gradual dos xamãs da aldeia para curandeiros do vilarejo, de curandeiros do vilarejo para boticários da corte, e de boticários da corte para médicos da cidade, incluindo a passagem de conhecimentos entre as culturas que mantinham relações comerciais ou que tinham assentamentos próximos (NATHANAEL et al, 2017). O próprio termo “xamã” é um termo guarda-chuva, o que já permite perceber que existem muitas medicinas diversas, de diversos povos, cada uma com sua influência na ciência médica atual.

Imagem: a riqueza de significados da palavra Shaman mostra que seu uso pode apagar e invisibilizar a riqueza cultural.

Os compostos utilizados em muitos remédios atuais partiram de práticas mágicas dos povos de antigamente. O chá da casca de salgueiro era um poderoso analgésico, e posteriormente se entendeu que o Ácido Salicílico poderia ser extraído dali e usado para dores de cabeça (Aspirina). Papiros egípcios indicam espremer mamonas sobre a cabeça para deixar os cabelos bonitos, e o óleo de rícino (óleo de mamona) tem sido muito usado para este mesmo fim. As fezes de crocodilo também eram usadas em ferimentos no Egito, e hoje se sabe que os fungos ali presentes podem gerar antibióticos como a Penicilina. Alecrim sempre foi associado a aspectos mentais e clareza de pensamento, e hoje já se sabe que contém óleos essenciais que agem sobre a memória e a ansiedade (NEMATOLAHI et al, 2018).

Imagem: CyberAgreste, por Wiedergrun.

Sendo assim, percebe-se que há muito do conhecimento tradicional de medicina natural que pode ser aproveitado e resgatado usando métodos científicos, para que haja uma sinergia na busca de novos remédios e compostos fitoterápicos, com ou sem etapas sintéticas posteriores para aprimorar seu efeito. A Etnoquímica pode estudar os compostos, a Etnoengenharia a sua extração, e a Etnofarmacêutica e a Etnomedicina podem explorar os efeitos sobre o corpo humano.

Este campo ainda tem muito o que ser estudado, e onde antes havia um certo preconceito agora há complementariedade. A Anvisa, no Brasil, inclusive já preparou um guia para que os profissionais da saúde conheçam e cataloguem os saberes tradicionais de forma científica, conversando com os pacientes sobre as plantas da região e sobre os métodos passados de geração em geração (ANVISA, 2018).

Etnoengenharias

No contexto das formas tradicionais de constituir construções e processos, podem ser citadas a forma tradicional de construir casas usada por diversos povos, a estruturação das próprias cidades dos povos indígenas, e os processos que são usados há milênios para a produção de diversos bens de consumo.

Imagem: casas tradicionais e modernas em Yucatan, por ArchLeague.

Embora os métodos modernos de construção civil (baseados em concreto armado, tijolos e blocos pré-moldados) sejam eficientes, percebe-se que há no conhecimento tradicional muitos métodos que são adequados para os condicionantes específicos de cada local, sendo assim muito pode ser aprendido com a arquitetura tradicional de cada povo. Esta arquitetura conversa com o ambiente, respeita os ciclos naturais e está bem preparada para enfrentar as intempéries, além de minimizar o impacto socioambiental e ecossistêmico (ARCHLEAGUE, 2018). Obviamente, cidades dos tamanhos das de hoje não poderiam se fiar somente de casas tradicionais de palha, mas poderiam se aproveitar dos telhados verdes, dos sistemas de escoamento pluvial e impermeabilização, e das técnicas para construir fundações conhecidos por cada povo.

Tecnoxamanismo

Imagem: foto do encontro de tecnoxamanismo.

Em contraponto à definição de “ciência” utilizada nas etnociências em geral, o Tecnoxamanismo tem um foco maior na arte, usando artefatos científicos (principalmente eletrônicos e cibernéticos). Pilhas, luzes de led, geradores de sons e antenas são utilizados em conjunto com ingredientes orgânicos para gerar arduínos, robôs, insetos cibernéticos e outras obras de arte sem necessariamente uma utilização prática explícita. Estes artefatos são usados em rituais, como obra de arte, ou para auxiliar a gnose e a contemplação da potencialidade humana em intercâmbio com a natureza (TECNOXAMANISMO, 2015).

A engenharia de robôs tem um campo florescente que se relaciona com o Tecnoxamanismo, a BioRobótica. Este campo procura mimetizar os movimentos de animais para criar robôs cada vez mais eficientes em sua movimentação por diversos tipos de solo e condições do ambiente. Já foram apresentados alguns protótipos nessa linha, como as Abelhas de Marte (NASA), o “CyberCachorro” SpotMini (Boston Dynamics), o MantaDroid (de Singapura), o SnakeBot (Carnegie Mellon University) e o OctoBot (Harvard). Estes protótipos podem ter diversas utilizações muito complexas e específicas no futuro próximo (THE GUARDIAN, 2018).

Imagem: SpotMini, SnakeBot, OctoBot.

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