FullMetal Alchemist

e a Alquimia Transcedental

Projeto Xaoz
12 min readMar 29, 2018
Imagem: Ed e Al no Anime Full Metal Alchemist.

Edward e Alphonse Elric são os olhos pelos quais somos levados por um universo steampunk semi-mitológico, que usa cenários e contextos após a recente revolução industrial europeia, referências à cultura e ordenamento alemãos, além de vários aspectos que fizeram parte do Zeitgeist (espírito da época) medieval e vitoriano. A Alquimia. A maior parte da história se passa em Amestris, um país governado por militares capazes de transmutar e dominar parcialmente a matéria a nível atômico, com encantamentos e círculos de transmutação. A história é centrada nos irmãos Elric, que resolvem usar um complexo ritual para trazer de volta sua mãe falecida, o que acaba colocando Ed de frente com a verdade absoluta e fazendo-os pagar um alto preço.

A série japonesa de Hiroku Arakawa, que já foi considerado duas vezes pela pesquisa do site oficial da TV Asahi (uma das mais famosas do Japão) o anime mais popular de todos os tempos, hoje é um dos animes mais queridos dos brasileiros. Foi transmitido primeiramente no Animax e na RedeTV, e agora é transmitido em suas duas versões pela Netflix, com ótimas dublagens e alçando a posição de um dos animes mais maratonados no país.

Imagem: Cena do live-action Full Metal Alchemist, da Netflix.

Alquimia

A Alquimia é uma tradição baseada em elementos e processos químicos e físicos, em correlação com elementos processos psíquicos, mentais e espirituais, para alcançar a transcendência. Inicialmente Tebana e Mesopotâmica, e posteriormente aprimorada na Grécia e na Europa, usa elementos destas várias linguagens como metáforas intercambiáveis, explicando a mente pelos fenômenos do mundo físico, e vice-versa. Desta forma, este Sistema tem forte relação com o princípio Hermético da Correspondência — o que está em cima é como o que está embaixo.

Os principais elementos do sistema alquímico apresentados em Full Metal Alchemist são os processos pelos quais passa a matéria, além dos estágios pelos quais ela passa em suas diversas transformações. Os elementos básicos que formam a matéria também são citados, além de entidades físicas e espirituais que são geralmente citadas neste Sistema. Na história, existe uma tradição clássica de alquimia difundida em todo o mundo chamada alcahestria, e outra proveniente dos estudos desenvolvidos em Amestris. Há ainda as tradições de ordens que misturam vários círculos mágicos para realizar as transmutações.

Para que os círculos funcionem, eles utilizam também o que chamam de runas, símbolos que funcionam como canalizadores ou catalisadores dos elementos a serem transmutados. Pela tradição da alcahestria, os processos alquímicos são: Compreensão (entender o mecanismo dos elementos químicos) — Decomposição (separar os átomos, o processo chamado Solve na alquimia clássica europeia) — Reestruturação (reconectar os átomos na nova composição elementar, o processo chamado Coagula). Por fim, para que todos os processos se completem, é necessária a Lei da Troca Equivalente, que assegura que o processo tenha o sucesso pleno e requerido pelo alquimista, e requer para isso todos os ingredientes necessários, por vezes tomando posse de ingredientes adicionais para completar o balanço.

Imagem: Símbolos Alquímicos, autor desconhecido.

O restante deste texto irá comentar sobre aspectos específicos da série Full Metal Alchemist. Se você não assistiu a todos os episódios, e não deseja receber SPOILERS, não continue a leitura. Caso contrário, pode continuar lendo, e complemente com suas percepções nos comentários!

A Lei da Conservação

“A alquimia é uma ciência de compreensão, decomposição e recomposição da matéria. Contudo, não é uma técnica onipotente, pois não é possível criar algo do nada. Se você deseja obter alguma coisa, é preciso pagar um preço, e este é o fundamento da alquimia, a chamada troca equivalente. Existe um tabu na alquimia que não pode ser quebrado por ninguém, a chamada transmutação humana.” — Abertura da série.

O Princípio Alquímico da Conservação da Matéria, postulado por Lavoisier, diz que “Em uma reação química feita em recipiente fechado, a soma das massas dos reagentes é igual à soma das massas dos produtos”. Isso é verdade para reações onde não há transferência de matéria para o ambiente, e onde não há conversão de energia em matéria (ou vice versa), o que só ocorreria em reações de fissão ou fusão nuclear.

Imagem: montagem com cenas do mangá de Full Metal Alchemist.

Este princípio é muito importante na química como ciência, pois indica que para a sintetização de substâncias é necessária a inclusão, na forma de reagentes, de todos os átomos que farão parte do produto final. Já no sentido mental, indica que os conteúdos mentais se transformam, mas a informação não surge de nenhum lugar, apenas é moldada e toma forma. Sendo assim, é necessário, antes de qualquer trabalho intelectual ou espiritual, que o autor reconheça em sua mente os ingredientes necessários ao trabalho. Só então os metais e conteúdos psíquicos menos nobres poderão ser convertidos em outros, de maior valor.

Solve et Coagula

Em Full Metal Alchemist, os processos alquímicos são realizados mediante três etapas: a compreensão, decomposição e reestruturação. Na Arte Alquímica, as reações são pensadas também em etapas. Primeiramente, na etapa Solve, os elementos se dissolvem. Posteriormente, se reorganizam, e se cristalizam formando os produtos, na etapa Coagula. Da mesma forma, para misturas metálicas, há uma bateria de procedimentos para dissolver e separar os metais, a purificação de cada um deles, e uma etapa de coagulação, onde são formuladas novas ligas metálicas.

Imagem: Ed, Al e os alquimistas federais, no Anime Full Metal Alchemist.

Quanto a conteúdos mentais, a etapa Solve corresponde a separar todos os aspectos de uma questão que precisa ser resolvida. Em seguida, cada aspecto é analisado e purificado em separado, e o conjunto é Coagulado em um novo Todo coerente. A Psiquê é, então, reconstruída e cada um de seus elementos (incluindo a Sombra) é integrado aos outros.

Círculos de Magia

Em Fullmetal, a forma mais eficiente de realizar as manipulações alquímicas é o uso de círculos de transmutação. Esses círculos têm a função tanto de encerrar o espaço de atuação da técnica, quanto manifestá-lo no mundo real.

Em japonês, os Renseijin ( 錬成陣, círculos de transmutação) são círculos para simularem o ciclo completo da transmutação da matéria (compreensão, decomposição e reestruturação, respeitando a troca equivalente), formados de circunferências e runas. Os círculos podem ser manifestos de quaisquer formas desenhadas, sejam no corpo, em artefatos, roupas, com sangue ou mesmo como sulcos na terra. Enquanto os círculos são como condutores, simulando o leito em que corre o rio, a perfeição auto-sustentável dos planetas, os circuitos elétricos e neuronais, as runas são suas substâncias, seus fluidos, suas eletricidades, são os signos que representam os elementos contidos na operação alquímica, e podem variar muito, por serem fruto de muito estudo e teste das tecnologias.

Imagem: Cena do anime Fullmetal Alchemist — Brotherhood.

Os Círculos de Magia também são utilizados extensamente na Magia Árabe, e posteriormente por diversos outros Sistemas. Um dos tratados mais famosos de utilização de Círculos de Magia é o Lemegeton, e esta técnica é utilizada em todas as 5 vertentes da Magia Salomônica apresentadas nesta compilação.

De forma geral, os Círculos de Magia são Sigilos: selos que encerram em si intenções ou evocam energias, sendo elas planetárias, elementais ou relacionadas a entidades já existentes.

No plano mental, os Círculos de Magia ou Mandalas são usadas para representar a totalidade da psiquê, ou ainda trazer o foco para aspectos específicos da personalidade. Os Círculos devem ser compostos usando símbolos que possuem relação com a intenção visada, e que podem vir de várias linguagens: Runas, Pontos Riscados de Pemba, Tarot, Astrologia, Alfabeto Tebano, entre várias outras. A Transmutação, neste caso, refere-se à conversão de um sentimento em outro auxiliada pelos círculos e pelas mandalas, o que pode ser útil na transcendência do magista.

Imagem: alfabeto Tebano e outros alfabetos no livro The Magus, de Barrett.

Homúnculos

Na Alquimia de Fullmetal existe um tabu que é a transmutação humana. Mesmo não havendo registros de seu sucesso, é considerado algo proibido, mas, baseado no conceito milenar dessa operação no ocultismo clássico, existem algumas “exceções”. Os Homúnculos na série são criaturas humanoides com consciência geradas por meio da alquimia e do uso da pedra filosofal, e existem sete, relacionados com os pecados capitais. Ao mesmo tempo, são encarnações desses arquétipos e emanações das próprias características de seu criador, o antagonista principal da série chamado de Pai, o homúnculo primordial.

Imagem: homúnculos de Fullmetal Alchemist - Brotherhood, por sack-rabbit.

No sistema Alquímico, um Homúnculo é uma intenção personificada na forma de uma entidade, se assemelhando bastante aos Servidores utilizados em Magia do Caos. Esta entidade vive geralmente no plano astral, e surge mediante forte intenção do adepto, ou mesmo no caso de uma fecundação que não ocorreu no plano físico. A intenção do magista nasceria em outro plano, na forma de um homúnculo, assim como os 7 Pecados capitais nascem em Full Metal Alchemist. No último episódio do desenho, é entendido porque os homúnculos vivem no mesmo plano que os irmãos Elric — se trata do plano Astral propriamente dito.

Imagem: Homúnculo primordial, trecho do mangá Fullmetal Alchemist.

O conceito do homúnculo parece ter sido usado pela primeira vez pelo alquimista Paracelso, no Século XIV, para nomear uma criatura que tinha cerca de 12 polegadas de altura e que, segundo ele, poderia ser criada por meio de sêmen humano posto em um recipiente hermeticamente fechado e aquecida em esterco de cavalo durante 40 dias. Então, segundo ele, se formaria o embrião.

Porém, paralelamente a isso, era comum em diversas Ordens mágicas o carregamento de sigilos por magistas homens utilizando sêmen, o que não levaria a uma fecundação física, porém a uma fecundação astral. Para isto, podiam ser usados instrumentos específicos, como um canal estreito feito de pedra para encaixe do pênis e do sigilo a ser energizado na outra ponta.

Imagem: Homunculus - The Alchemical Creation of Little People with Great Powers.

No Século XVII, com o surgimento dos microscópios, e a observação de germes e de espermatozoides de animais e de humanos, os conceitos de Animúnculo e Homúnculo passaram a ser usados para descrever pequenos animais presentes na água de um lago, ou animais e humanos minúsculos contidos nos espermatozoides, que viriam a se desenvolver em animais e humanos dentro do útero, após a fecundação. Ainda não se tinha conhecimento sobre a existência do óvulo, o que dava ao Macho o monopólio sobre o poder criativo de uma nova vida.

Imagem: espermatozoide contendo homúnculo, no “Essay de Dioptrique” de Hartsoeker.

Golem

Após o ritual de transmutação que dá errado, Alphonse perde totalmente seu corpo, mas seu irmão consegue gerar um sigilo ancorando sua alma a um corpo artificial, que se torna sua casca enquanto busca uma forma de retornar à sua forma original. Quando ele é obrigado a viver nessa condição quase robótica, sem sentir dor, nem fome, nem sono, nem tendo nenhuma função biológica como a dos humanos, ele se transforma também numa nova criatura, uma consciência vagando num veículo rústico como aquela armadura. Al se torna um Golem.

Imagem: o Golem, armadura ligada à alma de Alphonse, no Anime Full Metal Alchemist.

Na Bíblia, no Salmo 139:16, a palavra Golem é utilizada para se referir a um corpo sem alma, o homem “cru” que ainda não teria sido terminado, aos olhos de Deus. Esta definição de um corpo sem vida já era usado desde muito anteriormente, no Talmude judaico. Além disso, no livro Sodei Razayya, escrito no Século XII, são descritos os procedimentos para a criação de um Golem.

De forma geral, um Golem seria um corpo físico criado de forma artificial por um magista, e posteriormente associado ou não a uma alma. Também pode se referir, metaforicamente, ao homem que se deixa levar pelos seus instintos, e se encontra dissociado de sua alma e de seu intelecto, agindo de forma automática e impensada, não buscando a transcendência e seu propósito divino.

Quimeras

Quimeras são geradas o tempo todo em Fullmetal mesmo utilizando a lei da troca equivalente, mas os resultados geralmente são seres disformes, reunindo características não bem ordenadas de cada animal da mistura, e na maioria das vezes são criados com objetos ruins, para serem monstros ou experimentos militares.

As Quimeras geralmente representam os instintos, ou os sentimentos não diferenciados da psiquê, que se apresentam em estados animalescos exatamente por não serem compreendidos pela pessoa que os sente. Desta forma, se apresentam de forma exagerada, ou extremamente reprimida, com aparência animalesca ou disforme.

Imagem: Edward lutando contra uma quimera, no Anime Full Metal Alchemist.

Quando os magistas tentam criar vida em Full Metal Alchemist, é o que geralmente acontece. E geralmente é o que acontece a nível mental quando há uma tentativa de manipular sentimentos de forma equivocada e sem a devida prática ou direcionamento.

A Porta

“Eu sou o que você chama de Mundo, ou então Universo, ou então Deus, ou então a Verdade, ou então Tudo, ou então Um. Eu também sou Você” — A entidade na Porta.

Imagem: cena do anime Fullmetal Alchemist, transmissão da TBS.

A ideia de um universo dividido em planos é descrita em várias vertentes filosóficas e ocultistas, como por exemplo o Platonismo, o Gnosticismo e o próprio Caoísmo. Geralmente, são descritos pelo menos dois planos, um correspondente ao mundo físico e outro ao mundo astral. Entre estes dois mundos, que convivem no mesmo espaço-tempo, porém em frequências diferentes, haveria um véu, porta ou portal, e os magistas com maior treino poderiam ver através dessa abertura, ou mesmo atravessá-la.

Em Fullmetal, existe uma porta análoga, fisicamente visitável, que simboliza o limiar entre a limitada compreensão humana, e o infinito do conhecimento universal, a consciência plena. Na série, algumas das pessoas que tentam realizar a transmutação humana são lançadas nessa Porta, de onde não saem sem pagar um preço alto. Porém, se estiverem dispostas a pagar o preço, essas pessoas adquirem compreensão plena (que é uma das etapas alquímicas da série) e perdem a necessidade de usarem um círculo de transmutação para o restante do processo. Dentro desta porta, existe uma entidade que pode ser compreendida como o Sagrado Anjo Guardião, mônada, essência, Deus ou Eu Superior de cada um que ali entra, sendo que as experiências variam e sua forma é neutra, podendo adotar uma interpretação diferente para cada consciência que se comunica com Ele.

Imagem: Ilustração da Porta Alquímica por Henry Carrington Bolton em “The Porta Magica, Rome” (The Journal of the American Folklore Society 1894) (Domínio Público).

A porta também tem uma analogia poderosa com a tradição esotérica, ao demonstrar os desenhos da árvores cabalísticas Sephirótica e Qliphótica, sendo o portal que protege a consciência dos reinos de grande expansão e evolução, e abismo e involução, estados que experimentamos em vida com nossas mentes, e nos mundos sutis com nossos corpos astrais e espirituais.

Ao fim da série são deixadas duas mensagens principais. Uma sobre o mau uso da alquimia para realização de desejos vaidosos, que mesmo trazendo conquistas e controle sobre a realidade, trazem também arrogância e prepotência. A entidade deixa bem claro: “Eu trago desespero para os prepotentes”.

Esse desespero é o próprio Abismo, o contato com a grandeza do universo que nos faz ver realmente o lugar que ocupamos, e é necessário agir sempre com sensatez e humildade, independente de seus ganhos.

A segunda mensagem é sobre o verdadeiro preço a se pagar por uma vida. A troca equivalente final, o retorno do Portão pelo corpo de seu irmão, simboliza a dissolução, a abertura de mão dos conceitos racionais e intensos controles aos quais nos colocamos o tempo todo, por uma atitude de agir conforme à naturalidade, se mesclar com o fluxo das coisas, estar realmente conectado, para se viver uma vida plena. Ed abre mão de seus poderes alquímicos para ser a alquimia perfeita, o ser humano mais nobre, evoluído e alinhado com sua verdadeira vontade possível. Recupera a vida que sempre desejou e cessa a dor de sempre lutar contra aquilo que não pode mudar.

Imagem: os irmãos tentam ressuscitar sua mãe, no anime Full Metal Alchemist.

Pode-se dizer que Fullmetal é uma obra alinhada ao Caoísmo, por trazer elementos da Alquimia clássica e redimensioná-la numa noção fantástica onde a intenção de manipulação é expressa em sua forma mais hiperbólica, mostrando as consequências do uso mal intencionado ou irresponsável do poder que a magia dá. Influenciou a cultura pop contemporânea em vários níveis, sendo inclusive um dos artifícios usados por Bruno Borges no evento do Acre, e sendo uma das maiores referências de uma mensagem modificadora na mente de milhares de fãs ao redor do mundo. Hoje pode muito bem ser usado como referência para a criação de sistemas mágicos próprios e variados usos de círculos mágicos e sigilos, sendo fonte de uma egrégora poderosa de cultuadores da série pelo mundo, além de uma base para alquimia transcendental que reside na História de incontáveis homens como o sonho de transmutar chumbo em ouro. Do sonho de transmutar o homem inferior em um ser humano de excelência.

Imagem: My Little Pony and Fullmetal Alchemist Crossover, por Prototype-No-07.

Ass.: Zero & RoYaL.

Referências: Carl Jung — Os Fundamentos da Psicologia Analítica; Carl Jung — O Homem e Seus Símbolos; Peter Carroll — Liber Null e Psiconauta; Skinner e Rankine — Dr Rudd’s Goetia; Kenneth Grant — O Renascer da Magia.

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Este projeto visa compilar, analisar e desenvolver as bases do conhecimento de sistemas mágicos. Leia mais em: www.xaoz.com.br

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