Magia Baniwá
Mitologia e Cosmologia
Os Baniwa são um povo indígena de língua arawak e residem ao longo do rio Içana e de seus afluentes Aiari, Quiari e Cubate, na região do Alto Rio Negro. Somam aproximadamente 5 mil indivíduos em território brasileiro, distribuídos em 93 comunidades, e se dividem internamente em grupos de parentesco (fratrias) considerados consangüíneos entre si, subdivididos em sibs (clãs) hierarquizados de acordo com a ordem mítica de sua origem. Em território brasileiro, existem atualmente três fratrias: Hohodene, Walipere e Dzawenai.
As relações entre as fratrias são relativamente simétricas, comparando-se sibs de posição hierárquica similar. No entanto, é possível que tenha havido, no passado, uma certa especialização de papéis entre as fatrias. Assim, os Walipere, principalmente os walipere-dakenai, eram tidos como grandes estrategistas na guerra, enquanto os Dzawenai se ocupariam da execução física das ações guerreiras, ficando, assim, sob o comando militar dos primeiros. Embora o termo ‘baniwá’ não seja originalmente uma autodenominação, acabou sendo plenamente adotado enquanto tal. São também chamados wakuenai, na Venezuela, e de curripaco, na Colômbia.
Cosmologia
Para o povo Baniwa, o universo é dividido em quatro níveis hierárquicos:
- Wapinakwa (O lugar de nossos ossos);
- Hekwapi (Este mundo);
- Apakwa Hekwapi (O outro mundo);
- Apakwa Eenu (O outro céu).
A cosmologia dos Baniwa ordena as preocupações da cosmogonia na criação de uma hierarquia de estados e de poderes, perceptível na descrição de cada um dos Reinos.
Wapinakwa, O Lugar de Nossos Ossos
O mundo dos mortos e dos espíritos. Sua composição apresenta quatro linhas horizontais representadas por quatro tipos de madeira: ambaúba, umari e dois outros tipos não identificados. Cada um de seus níveis é habitado por um tipo diferente de distintos espíritos femininos:
- Dumalipekwaro é o espírito feminino da camada mais baixa, é uma “moça bonita”, provoca trovão e relâmpago, escuridão e morte;
- Pirimapekwaro é um espírito que grita, atraindo as pessoas para sua casa, onde as mata e devora;
- Pawedawa-nai são espíritos que dormem pendurados nos paus, “gente que nunca nasceu”.
É um lugar marcado por imagens de morte e catástrofe, habitado por seres ameaçadores que aguardam o momento de saírem de lá. Ele é cortado por um rio de água fria e doce para onde é jogada a dor de certas doenças durante os cânticos de cura. Ele é o oposto das camadas mais altas do cosmos. Sua horizontalidade representa a desvinculação aparente entre as suas camadas e o mundo de cima. Ali, tudo está em suspenso, dormente, letárgico.
Hekwapi, Este Mundo
Sua composição apresenta duas camadas. Na primeira fica Hipana, a principal cachoeira do rio Aiari, o lugar sagrado de conexão entre os mundo acima e abaixo do nosso, considerado o centro do mundo, o lugar de nascimento mítico da humanidade. Neste local, o deus Kowai foi assassinado e queimado, e de suas cinzas nasceu a árvore de paxiúba, que subiu até o centro do céu. Esta árvore está sobre a guarda do gavião branco Kaali, o detentor dos segredos das plantas medicinais.
Na segunda camada fica Iaradati, a casa das almas dos animais. Ele é o céu do mundo de baixo, habitado pelas almas de todas as espécies de animais na terra e de todos os espíritos da floresta. Esta camada expande ao mundo inteiro a sua natureza sagrada e isso se estende às outras cachoeiras, às serras, aos rios e aos povoados.
Em Iaradati, o chefe dos animais comanda uma legião de espíritos dos rios e das matas que ele manda para perseguir os seres humanos, o que leva à doença. Todas as doenças deste mundo que não são o resultado de feitiçaria ou das ações de outros pajés seriam provocadas por estes espíritos. Assim como os espíritos dos mortos, os espíritos dos animais aparecem como um vento, rodeando as pessoas que andam nos matos e as deixando com doença. Os pajés têm o poder de abrir e entrar em Iaradati e pedir ao Chefe dos Animais a caça ou devolução das almas de pessoas aflitas pelos espíritos dos matos e rios.
Apakwa Hekwapi, O Outro Mundo
O “Outro mundo” fica acima deste mundo. Ele é constituído de cinco lugares separados, habitados pelos espíritos-pássaros. Esses espíritos são femininos, filhas de Dzuliferi (Dzooli), e auxiliam os pajés na procura de almas perdidas.
Depois de cinco anos de aprendizagem, o pajé deve fazer o “casamento espiritual” com os espíritos-pássaros, principalmente o urubu, e gerar muitos “filhos”. Esses filhos é que o tornarão poderoso, pois cada espírito-pássaro é “dono” de um tipo específico de dardo-espírito que o pajé adquire durante sua aprendizagem e é associado a tipos específicos de doenças e curas.
Apakwa Eenu, O Outro Céu
O “Outro céu” fica no ponto mais alto do “Outro mundo”, e é um lugar marcado pela transformação: as almas dos mortos são purificadas e adquirem sua essência eterna, os pajés separam as almas dos mortos dos vivos, o pajé “morre” para continuar sua viagem ao mundo eterno das divindades.
Sua delimitação é feita pelas bordas, que têm mais destaque que as bordas das outras camadas, porque impedem a passagem das almas e apontam um outro caminho, o de Inyaime Dzakale. Inyaime é um espírito de transformação, manifestação maligna de Kowai. Segundo os Baniwa, ele “leva” muitas almas para sua aldeia. O caminho até Inyaime Dzakale é bonito, cheio de flores cheirosas, mas muito quente. Ele é semelhante a “Este Mundo”, um lugar de trabalho e de sofrimento. Um lugar eterno de acerto de contas.
As almas, que continuam seu caminho, precisam ser purificadas passando pelo “buraco de breu fumegante”, localizado no centro aberto e vazio do céu. Este fogo separa as identidades física e social da alma. Depois de purificadas, as almas já brancas, reluzentes, seguem seu caminho até suas casas. Para umas, nas bordas do povoado de Kowai; para outras, no povoado de Ñapirikoli. Neste lugar, a ocupação eterna das pessoas impedem-nas de se lembrarem de suas famílias e de quererem voltar para este mundo.
O Caminho dos Pajés
O caminho feito pelo pajé ao Outro céu é bem mais complexo que o das almas. O pajé, depois de passar pelo buraco de breu, segue um caminho que o leva até o “céu do meio” onde Kowai e Dzulíferi estão. O acesso a este centro sagrado se dá pela “porta do céu” que abre e fecha ininterruptamente como uma tesoura. É uma passagem perigosa, pois dá acesso à “barriga do céu”.
Antes de entrar pela porta, o pajé deve “morrer” para Kowai descer seu cordão umbilical, em forma de cruz, para que ele o segure e o atravesse pela porta até o céu do meio ou à “barriga do céu”. É neste lugar que o pajé inicia sua busca pela alma perdida do doente. O pajé só tem acesso à “fonte da alma e da vida generativa em si” e à “realidade espiritual do mundo primordial”, porque sua alma foi purificada e isso significa que ele deixou a sua natureza terrena.
Antes de passar pela porta que dá acesso ao “mundo de luz plenamente manifestado” de Ñapirikoli, o pajé vê a alma-sombra de Dzulíferi e de Kowai. A alma-sombra representa o escuro do coração/alma, um “coração humano de escuridão primordial” no vazio escuro do centro do céu. A alma-sombra, porém, remete além de si ao que se chama de “o mundo de luz plenamente manifestado” — o mundo de Yaperikuli na camada mais alta do cosmos onde a luz eterna do sol primordial brilha: “o modo de ser onisciente, onipotente, e onipresente que os seres humanos experimentam nos seus seres interiores como uma ausência escura constitutiva da sua própria alma.
A Casa de Kowai
No lugar habitado por Kowai há todo tipo de doença e de árvores com espinhos venenosos. Esse lugar é habitado por todos os pajés primordiais. É a parte central de onde pode vir tanto a doença quanto a cura dela, o que dependerá da oferta feita pelo pajé a Kowai para obter a cura.
Acima do povoado de Kowai, um outro caminho leva o pajé ao nível de Ñapirikoli e sua harpia Kamathawa, “o ponto do céu”, fechado e pontudo “como uma faca” onde o universo termina. É um lugar sobre o qual pouco se sabe devido à dificuldade de alcançá-lo. A maioria dos pajés só o vê à distância. Somente os profetas mais sábios e poderosos o alcançam. Segundo dizem, ele é um “lugar escondido”, lugar de felicidade, mais limpo, mais bonito que qualquer outro lugar do cosmos. Lugar de luz eterna e de remédios infalíveis, fonte de toda sabedoria que começou e fez o universo.
Durante sua aprendizagem, o pajé deve alcançar um lugar próximo desse nível onde ele, tal qual Ñapirikoli, pode mostrar seu poder de criar tudo o que existe no mundo em seu pensamento.
Cosmogonia
No tempo primordial, quando não existiam o Sol e nem os humanos, a Terra era povoada por animais organizados em tribos conforme sua espécie, que tinham características humanoides. Enúmhere (ou Dzamiquape, a criatura mais antiga do mundo e um ser maligno) era o chefe de uma dessas tribos de animais, que eram as canibalescas e vorazes onças.
Um dia, depois de comer a carne de um dos animais que havia matado numa guerra, Enúmhere pegou um dos ossos e jogou-o rio abaixo. Tomada como esposa, após sua vitória contra um poderoso rival, a filha de seu inimigo chorava insistentemente pela morte de seus pais na guerra. Diante do lamento da esposa, mandou-a buscar o osso no fundo do rio. Ela assim o fez. Pegou a rede de pescar, a cuia e foi em busca do osso. Ao recuperar o osso, viu que havia três camarões dentro dele. Ela os levou para casa, colocou-os ao lado da fogueira e os alimentou. Com o passar do tempo, bem alimentados e aquecidos, transformaram-se em grilos. Eles eram os Nhãpirikunai, que significa ‘eles-dentro-do-osso’.
Os Três Irmãos
Os Nhãpirikunai, que nasceram de um osso, eram três irmãos:
- Ñapirikuli (ou Inapirikuri, ou Yapirikuri) tem seu nome significando como “todo de osso, portanto sem carne”. Os ossos são cobertos diretamente pela pele, sendo a carne uma coisa desnecessária. Só o espírito tem valor e importância. Este é o Deus supremo da religião Baniwa.
- Dzulíferi (ou Dzooli) é o grande pajé ancestral mítico, é ele quem possui o conhecimento sobre as plantas medicinais e os cânticos necessários para manter a futura humanidade pura, curar as doenças e afastar os maus espíritos.
- Eeri (ou Eri ou Kuwaikaniri ou Mawirikuli), o irmão menor, é capaz de causar doenças e morte, e possui os poderosos “sopros” Hiwiathi (o mal).
Aos cuidados secretos da avó, eles cresceram se transformando em pica-paus e em outras espécies de animais. Assim, permaneceram com habilidades de metamorfose, que usavam para melhor alcançar seus objetivos.
O Imaginador, o Modelador e o Executor
Ñapirikuli, Dzooli e Eeri tinham três personalidades complementares. Ñapirikuli era imaginador, pensava em criar as coisas do mundo para as deixar para nós. Já a personalidade de Dzooli era de dizer como devia ser feito. Eeri era o executor, ou seja, quem fazia as idéias de seus irmãos acontecerem na prática.
Sentados juntos, eles faziam cigarros e fumavam. Daí, começavam a imaginar como seria o mundo e o que ainda precisava ser feito. O cigarro ia passando pelas mãos de cada um, começando pelas mãos de Ñapirikuli, que era quem acendia o cigarro e soprava a primeira fumaça no meio dos irmãos.
Os três irmãos planejavam um caminho de vingança contra Enúmhere e seus guerreiros, por estes terem massacrado seus parentes. Durante milênios, travaram uma grande luta contra todos os guerreiros de Enúmhere, e ao longo da guerra Ñapirikuli fez muitos inimigos, entre eles a tribo dos trovões Eenunai, e a tribo das serpentes-peixes, chefiada por Omawali. O “Chefe dos Trovões”, Dzauikwapa — nome dado devido a seu poder nos combates — se tornou seu principal arqui-inimigo durante as batalhas.
Os Trovões Eenunai
Os Trovões, no mundo primordial, eram os Eenunai, as tribos que habitavam as árvores, além de donos do veneno. Eles representam o veneno e a feitiçaria, consideradas as principais causas da morte humana no mundo. Hoje, teriam se transformado nas várias espécies de animais arborícolas — preguiça, macaco, etc.
Aos poucos, os irmãos reconquistaram os reinos que pertenceram aos seus antepassados e estabeleceram uma nova ordem. Porém, para alcançar seu objetivo, precisavam de uma força superior à sua condição de seres encarnados no mundo físico. Essa força consistia em aprender a fazer trovões e conseguir Malikai, poder mágico ou poder xamânico. Para isso, seu primeiro desafio foi encontrar a árvore onde estava Kamathawa, O Gavião, o grande pajé ancestral.
Surgem os Humanos
O caminho que os três irmãos percorreram os fez chegar em Uapui, uma cachoeira no rio Içana. Ñapirikuli disse-lhes: “Estou sentindo que aqui há seres humanos! Rápido! Façam um buraco!”. Os outros dois fizeram na terra buracos de grande profundidade, até que encontraram os homens. Eeri pegou um deles pela mão e puxou-o para fora, vindo atrás deles uma multidão de homens. Dzooli fizera o mesmo. Ñapirikuli ia-os contando, até que finalmente disse: “Basta! Fechem novamente o buraco”. Os homens estavam todos em fila. Ñapirikuli disse aos irmãos: “Você são os chefes de toda essa gente, por o terem tirado da terra”.
Dzooli e Eeri fizeram dessas duas tribos importantes aliados na guerra em que travavam. Os Hohodene foram considerados filhos de Eeri, e são conhecidos como fortes guerreiros, denominados como Caciques. Já os Walipere-Dakenai, considerados filhos de Dzooli, são o grupo de chefes místicos, ou seja, dominam o conhecimento da pajelança.
Ñapirikuli Cria os Nascimentos
Ñapirikuli estava comendo uma pequena fruta de matiti que tinha três folhas. Ele passou as três folhas pelo rosto para limpar-se e depois colocou as folhas sobre um jirau. Em seguida, fez fogo para assar a carne que havia caçado. Sua tia Amaru, ao passar pelo local, perguntou o que ele havia colocado no jirau. Ele disse que não era nada e não lhe mostrou as folhas.
Amaru, escondida, pegou as folhas contendo seiva e o suor de Ñapirikuli e as passou sobre o rosto para limpar-se. Na noite seguinte, ela teve um sonho: ela viu que Ñapirikuli estava deitado sobre ela. Em uma noite posterior, ela teve o mesmo sonho, e também foi assim na terceira noite. Depois de três ou quatro dias, percebeu que estava grávida. Um mês mais tarde percebeu-se que a criança estava para nascer.
Amaru não tinha vagina. Então Ñapirikuli saiu para pescar corn ela. Ele apanhou um peixe de 20 cm de comprimento, denominado Jacunda-Piranga. Ele segurou o peixe com a mão e disse à tia, que estava sentada na canoa, que abrisse as pernas. O peixe abriu-lhe um orifício no corpo, um caminho para a criança nascer.
Nasce o Sol
Ñapirikuli e sua tia Amaru foram pais de Kowai, o deus do Sol, que nasceu contendo pura luz e calor. Seu nascimento se deu em condições adversas, pois Ñapirikuli, não querendo ter um filho, benzeu um cigarro que dificultou o nascimento da criança e causou as dores do parto na mãe dela e nas futuras mães da humanidade.
Quando Amaru deu à luz, Ñapirikuli viu que o filho era um ser terrível, e o escondeu na água. Amaru, que havia desmaiado de dor, voltou à consciência, perguntou pelo filho, e Ñapirikuli, pegando o “lugar de assento” de Kowai (a placenta) respondeu: “Está aqui o seu filho”. A mãe não acreditou, achou que Ñapirikuli havia escondido o filho. Ela pegou a placenta e viu que não tinha olhos nem boca, e que o pedaço do fio do umbigo de Kowai ainda estava sangrando.
Ela disse: “Esse não é o meu filho”. E Ñapirikuli respondeu que sim, que era o filho dela, que ela havia desmaiado para não ver o parto, porque o filho era diferente. Amaru, então, o mandou jogar no rio, e Ñapirikuli concordou. Assim que Ñapirikuli jogou a placenta no rio, ela se transformou em uma arraia (yamaro). Ambos viram que as novas gerações haveriam de supor que se tratasse de um animal comestível, mas não, este seria um animal sem espinha, mas com ferrão e veneno.
Kowai, o Deus Sol
Kowai, o Sol, nasce para estabelecer a sociabilidade entre os mais velhos e os jovens, entre homens e mulheres. Nascido de um infortúnio, filho de Ñapirikuli e Amaru, foi destinado ao isolamento por seu pai no dia em que nasceu, cresceu longe das vistas da mãe e subiu aos céus, tornando-se uma criatura imensa, de aspecto monstruoso.
Tem como característica principal a ambiguidade. É um ser dúbio que comporta traços tanto positivos quanto negativos. Desperta medo e respeito, repulsa e adoração, amor e ódio. Ele permanece refletido nos seres que criou e no saber compartilhado com seus afins. É o duplo de seu pai, Ñapirikuli, o Imaginador. Diferentemente dele, porém, o seu domínio sobre o outro se dá no campo da sociabilidade, e seus conhecimentos serão fundamentais para a humanidade.
Dele provém o conhecimento transmitido de geração a geração através da música. Seus sons, no mundo Baniwa, têm o “poder de curar” não só os males do corpo, mas também os comportamentos indesejáveis ao bem da coletividade. Nos mitos dos Tariana, povo aruak-falante, Koe ou Kowai (em Hohodene) foi criado por Enu — o Trovão. Daí sua natureza poderosa de “abrir” o mundo, criar a humanidade, pois o trovão é o som mais poderoso do céu. O Sol Kowai circula tanto no mundo espiritual quanto no visível.
Kowai Cria a Sociedade
Depois de ser exilado, Kowai voltou como um ser muito sábio possuindo agora o corpo de um macaco, mas a cabeça, as mãos e os pés de um ser humano. Kowai era o dono primordial dos saberes ligados ao ritual de iniciação masculina, às rezas, remédios e venenos, à doença e à cura, à reprodução e à destruição da sociedade. Ele fazia a junção entre natureza e cultura, entre violência, canibalismo, assassinato e comportamentos socialmente benéficos que garantem a reprodução do mundo Baniwa.
Dzooli recebeu de Kowai, seu sobrinho, o conhecimento sobre as plantas medicinais e a capacidade de criar os cânticos terapêuticos necessários para manter o povo puro, curar as doenças e afastar os maus espíritos. Assim, sua descendência tinha em mãos o poder de curar, de fazer o bem. Já Eeri, enganado por Kowai, aprendeu os procedimentos necessários para causar doenças e morte, os “sopros” Hiwiathi, o mal. O povo de Eeri ganharia expressão posteriormente, quando Nãpirikuli e Kowai não estavam mais no mundo Baniwa. Constituem os aspectos de uma sabedoria que precisa ser compreendida e controlada.
Kowai Cria os Animais
Três irmãos, filhos de Dzooli, receberam de Kowai os primeiros ritos de iniciação pubertária, que incluíam períodos de jejum. Somente um dos iniciandos conseguiu cumprir a abstinência alimentar exigida até o fim, o que provocou a fúria de Kowai, o fazendo se transformar num ser monstruoso e deformado, de tamanho gigantesco, sem possuir noção de civilidade, tomando características totalmente selvagens e passando a devorar os desobedientes.
Após devorar os filhos de Dzooli, Kowai se acalmou, tomando a forma de um homem, cujo corpo era cheio de buracos pelos quais emitia zumbidos e cânticos que criaram todas as espécies de animais. Cada parte de seu corpo emitiu um som, compreendendo todos os elementos do mundo. Quando todas as partes de seu corpo cantaram ao mesmo tempo, produziu-se o poderoso som que formou o mundo como é hoje, com florestas, rios, várias espécies de animais, pássaros, peixes e o homem.
Alguns Alimentos se Tornam Proibidos
Kowai quis colher frutas e pediu aos seus três meninos aprendizes para irem com ele, com a condição de que eles não deviam comer nada. Kowai subiu em uma árvore de uacu e com uma vara derrubou as frutas. Os três meninos recolhiam as frutas e abriam-nas para retirar o caroço. Dois dos meninos disseram: “Não podemos mais aguentar, temos fome”, e foram ao rio para pescar. O terceiro ficou debaixo da árvore. Usando um inseto em uma corda, conseguiram pegar dois peixes, que assaram no fogo. Kowai, que ainda estava em cima da árvore, percebeu o que os meninos haviam feito e começou a zunir, irritado. Começou, então, uma tempestade, provocada por sua fúria.
Os meninos procuraram então proteção contra a tempestade. Viram diante de si uma grande árvore na qual havia um enorme buraco, onde se esconderam. Porém, esta árvore grande com o buraco, era, de fato, a ânus de Kowai. Este fechou-se, e os meninos ficaram presos na sua barriga. Como consequência da desobediência dos jovens, Kowai, que estava benzendo os alimentos nesta época, decidiu não concluir o benzimento da pimenta, mantendo sua essência impura. Assim, em alguns casos de doença, há restrição de alimentos, dentre os quais a pimenta e os peixes, pelo doente e sua família.
Os Homens se Tornam Mortais
Ñapirikuli percebeu que começou a chover, e estendeu a mão para recolher a água da chuva, mas recolheu sangue. Ele pensou então: “Kowai devorou os meninos, e deve estar chegando em casa”. Ñapirikuli mandou colocar no pátio diante da casa quatro cestos. Kowai, de barriga cheia, chegou ao pátio e vomitou o que tinha comido. Os três meninos caíram nos três primeiros cestos. No quarto cesto caíram as frutas.
Ñapirikuli estava indignado por tudo o que acontecera. Mandou enterrar os três meninos e distribuiu as frutas. Ele disse a Dzooli e Eeri:
“Devemos matar Kowai! Ele é capaz de matar todos os homens. A mim ele não pode devorar, mas a vocês todos ele pode devorar”.
Então, enviou um macaco acutipuru para dar a Kowai o recado de que queriam vê-lo. Após uma noite, Kowai apareceu perante eles. Dzooli e Eeri, que já haviam acendido a fogueira, cercaram Kowai e o seguraram. Ñapirikuli, sabendo da única fraqueza de seu filho, fez canto e dança sagrada para que ele ficasse imóvel e fraco, e o embebedou com bebida mágica.
Antes de adormecer com o efeito da bebida, Kowai disse: “Eu sei de tudo, mas a mim vocês nada podem fazer! Sou imortal! Eu voltarei à abóbada do firmamento. Minha língua e meu espírito não podem morrer. Eles retornarão ao firmamento, minha casa, e a partir de agora todos os homens devem morrer! Se você não me matasse, eles poderiam ir para o firmamento quando estivessem cansados e velhos, sem morrerem”.
Surgem o Sol e a Sombra
Mesmo amaldiçoando os seres humanos, Kowai foi lançado ao fogo e, quando a barriga dele explodiu, ouviu-se um barulho. O espírito de Kowai foi para o alto dos céus onde já era sua moradia. Ñapirikuli ficou ainda mais um mês naquele local, e em seguida procurou Kowai para ver onde ele estava. Quando viu seu corpo bonito repleto de luz, regressou à Terra.
Na fumaça do corpo queimado de Kowai e em suas cinzas ficaram todas as doenças. Kowai passa a ser descrito espiritualmente como Wamundana, uma sombra que, como o abraço forte da preguiça, entra nas almas dos doentes, sufocando-as caso nenhuma ação seja tomada. Porém, o pajé tem o poder de recuperar a alma e a devolver ao seu dono.
Além disso, no local onde Kowai foi queimado, restou o seu veneno, Kurumále, que passou a ser protegido por Eeri. Os Eenunai (tribo do trovão) roubaram o veneno, e ao tentar recuperá-lo Eeri não resistiu e morreu. Na aldeia, tentou-se fazer um processo de reversão de sua morte, mas esta tentativa foi em vão.
As Flautas Kowai
Ñapirikuli começou a sonhar com Kowai, dias depois de tê-lo matado. Em um sonho, Kowai disse: “Vá ao local onde morri, veja onde era o meu umbigo, e espalhe o que sobrou dele”. A intenção, porém, era matar Ñapirikuli e, quando ele mexeu no umbigo de Kowai, este tornou-se veneno. Mas Ñapirikuli não morreu, e no lugar do umbigo nasceu uma palmeira, chamada paxiúba (póopa). Era uma planta que chegava ao céu, e Ñapirikuli viu que era muito bela. À noite, sonhou novamente com Kowai, que disse que fizesse flautas, segundo algumas medidas específicas. Ñapirikuli chamou animais para ajudá-lo. Uma rã mediu todos os segmentos até o céu, marcando as medidas que Kowai descreveu, enquanto o besouro takairu cortava os pedaços.
Ñapirikuli sonhou novamente, e Kowai lhe mostrou como guardar as flautas na água. Depois disso, Ñapirikuli sentou-se e observou todas as flautas, montadas aos pares. Naqueles tempos, o mundo era pequeno. Ñapirikuli, incansavelmente, soprou as flautas, e o mundo se estendeu até alcançar o tamanho que tem hoje. As flautas Kowai não são instrumentos comuns, como tantos outros que os Baniwa possuem. Nenhuma mulher ou jovem não iniciados podem ver uma flauta Kowai, e por isso os instrumentos devem ser confeccionados e preparados longe das comunidades, embrulhados caprichosamente e guardados no rio, em locais distantes dos acessos comuns, longe dos caminhos cotidianos. Quando tocados, exigem que as mulheres permaneçam em ambientes restritos.
Referência: XAVIER, 2008 — A Cidade Grande de Ñapirikoli e os Petroglifos do Içana.