Magia Kaiowá

Animais Primordiais e a Trama dos Céus

Projeto Xaoz
10 min readFeb 20, 2019

Segundo o site PIB Socioambiental, os “guarani-kaiowa, como são conhecidos na literatura antropológica brasileira, de bom grado, como informa Cadogan (1959), aceitariam a designação de paĩ, título empregado pelos deuses habitantes do paraíso ao dirigir-lhes a palavra, mas o nome que melhor lhes corresponde é o de tavyterã ou paĩ-tavyterã,que significa “habitante do povo [aldeia] da verdadeira terra futura “ (távy-yvy-ete-rã). Os ñandeva referem-se a estes paĩ-kaiowa como tembekuára (orifício labial) por seu costume de perfurar o lábio inferior dos homens jovens onde se insere pequeno bodoque de resina em cerimônia de iniciação.

O nome Kaiowa deve decorrer do termo KA’A O GUA, ou seja, os que pertencem à floresta alta, densa,

o que é indicado pelo sufixo “o” (grande), referindo-se aos atuais Guarani-Kaiowa ou paĩ-tavyterã. Haveria, desta forma, uma diferenciação em relação ao termo KA’A GUA, os que são da floresta sem, necessariamente, que seja densa ou alta, categoria em que se incluiriam os atuais Guarani-Mbya”.

Imagem: Guarani-Kaiowa por Vincent Carelli.

Cosmogonia

Antes do princípio do universo, quando tudo era o nada, Nhamandu era o único. De Nhamandu, surgiu misteriosamente a Jasuká (névoa, chuva ou água primordial). Ela era a fonte divina da vida, a vida principiante, a geradora da existência, da suprema existência, do início de tudo.

Em meio à Jasuká, se criou, se fez, por si próprio, Nhandê Ramõi Eté Jusu Papa Tenondé (Nosso Avô Eterno, Grande Falante Primeiro). E o tempo se inicia. Enquanto ainda crescia, da Jasuká mesmo se amamentou, em seus seios, que adquiriram o formato de uma flor. Nhandê Ramõi, o Ser supremo, quando já consciente de seus atos, se viu através do Caos, através de Nhamandu, como Urukure’a (coruja primordial). Ao voar pelo vazio do Caos, pelo vazio do nada, que era O Nhamandu, fez surgir toda a extensão do universo, trazendo a escuridão e o vento primordial.

Em cima da cabeça divina de Nhandê Ramõi existem flores, existem plumas que formam um Jegwaká (cocar, diadema). Entre as flores e por entre as plumas o deus supremo se expressa como Maino (colibri primordial), a primeira alma, o primeiro espírito.

O colibri se ergue num vôo para se alimentar da essência de Nhande Ramõi, que era a si próprio, viajando para dentro de si mesmo percorrendo três caminhos, encontrando três dimensões dentro de outras três. E a vida se manifestava. O primeiro fundamento da vida que se expressa é Parudá ou Rudá, O Deus do Amor.

Ao voltar-se para fora de si, ainda como Maino, Nhandê Ramõi se explode divinamente (o Big Bang), e Nhamandu começa a ser preenchido com infinitos fenômenos, que faziam parte de si mesmo. O Universo então estava criado.

Cosmologia

Do centro do Jegwaká de Nhandê Ramõi, se levanta, criando-se por si só, Nhandê Jari (Nossa Avó), que passou a possuir a função de organizar os elementos que iam sendo criados por Ramõi. Envolvendo a Jasuká com um pedaço de si, Nhandê Ramõi fez sete camadas de yva (céus), colocando em cada uma delas uma legião de seres divinos.

Imagem: cestas de palha com padronagens Guarani.

A Yvakua (portão celeste) é a abertura que tem que ser transposta para se entrar no paraíso, e está vigiada pelos Gwyraju akayutã (pássaros divinos, papagaios que pronunciam a chega das almas dos mortos). Nhandê Ramõi construiu em seguida a Arapopy, local em que as almas devem passar por provações, difíceis provas para provar o seu valor de ida para o céu. Essas provas se passavam num lugar chamado Piragwái, que ficaria dentro de Arapopy. Nhandê Ramõi fez também uma rodela de terra plana, que para não ser engolfada pelos sete céus foi apoiada por kurusu (cruz) em seu centro. Abaixo dela, fica a yva pytümby (casa da escuridão).

Nhandê Ramõi fez quatro Pindó Marangatu (palmeira santa, cuja cor azul representa a força divina celeste e a eternidade). Essas quatro palmeiras foram colocadas nos quatro pontos cardeais, gerando seres cuidadores para cada um desses cantos.

No norte estaria Jakaira, a divindade que gera neblina e fumaça. Na nascente ficaria Karaí, Senhor do fogo sagrado, divindade da luz. No poente estaria Tupã, Senhor dos trovões e das tempestades, Senhor das sete águas. E no Sul, a força além do universo, o próprio Nhamandu, estaria localizado. Nhandê Ramõi fez também uma quinta palmeira no centro, junto à kurusu, para assegurar o firmamento. O tempo foi alterado por Tupã, e os quatro deuses das estações do ano foram criados. Eram eles Ara Yama (divindade do inverno), Ara Poty (divindade da primavera), Ara Kuara Sy Puku (divindade do verão) e Ara Pyau Nhemonkandire (divindade do outono).

Imagem: diagrama do universo Kaiowa, por Gabriel Costa.

Muitas outras coisas como as estrelas, os arco-íris e as nuvens (era o próprio Tupã as quem empurrava pelo céu) passaram a existir, cada qual possuindo suas histórias de criação. Após tudo isso, a sétima camada de céu foi tingida pela primeira noite. Essa era a Yva Tenondé (terra primeira), que também podia ser chamado de Yva Araguyje (Terra do tempo-espaço perfeito) e Yva Marãne’y (Terra sem males). Era inicialmente uma terra sem malícia e sem perigos.

Animais Primordiais

Com um sopro de vida (o ar originário), Nhandê Ramõi fez nascer os primeiros seres que iniciaram a povoação na terra. Mboi era a Serpente Originária, aquela que representa a sujeira e o perigo de morte. Yrypa, a Cigarra Originária, a primeira habitante da terra sagrada. Yamay, o Girino Originário, Dono das águas, que iniciou o mundo aquático. Tuku foi o Gafanhoto Originário, que fez as savanas, e Inambu o Perdiz Originário que primeiro habitou-as. Foi o Tatu Originário quem perfurou a terra, criando o mundo subterrâneo. Jagwareté era a Onça Original, e no princípio do mundo eram as onças as protagonistas, antes dos seres humanos serem criados. Todos eles eram inicialmente humanoides.

Assim, no mundo criado por Nhandê Ramõi, existem 10 reinos (7 céus, purgatório, inferno e o mundo), 10 planos intermediários, que podem ter ligações entre si, como um conjunto único formado a partir de Jasuká.

Imagem: onça pintada por “instituto onça pintada”.

O primeiro casal da primeira geração que povoou o mundo era composto por Xiru Yryvera (brilho das águas) e Ha’i (Mãe). O casal teve três filhas: Hachã Rusu (Irmã Mais Velha), Hachã Mirĩ (Irmã Mais Nova) e Hachã Mirĩ Pahagwe (Irmã do Meio). A filha mais velha do casal se casou com Jakaira Gwasu, o Grande Jakairá, com quem teve duas filhas: Hachã Rusu, a mais velha, e Hachã Mirĩ, a menor.

Naquela época, não existia ainda a terra. Os dois casais e suas famílias viviam em lugares diferentes, flutuando no ar. Então, Jakaira Gwasu tentou criar a futura terra. No lugar onde vivia com a sua família, Jakaira Gwasu pegou na sua mão um pouco de pó da terra, o soprou e a futura terra começou a se esticar. Para viver sobre ela, ele a esticou, para ter um lugar onde pôr seus pés, e tentou fazer a terra. Mas a futura terra não era totalmente firme, era uma camada muito fininha e fofa.

Então ele misturou pedra com a terra, pisou novamente sobre a futura terra e percebeu que ela ainda não estava bem dura e firme. Então colocou no meio da futura terra um pouco de terra roxa e encimou quatro camadas. Depois de esticar esta nova massa, ele pisou novamente sobre a futura terra e percebeu, com os demais Seres que tinham ido observar sua criação, que a futura terra já estava bem dura e firme.

O Sol e a Lua

Depois de a terra ter sido esticada, chegaram ao grande Kandire os gêmeos futuro Sol e futura Lua, para levantar as futuras árvores e os futuros bosques. No corpo das árvores, eles penduraram todo tipo de mel, somente o mel que dá na terra eles não colocaram nas árvores, deixaram-no pelo chão.

Então os seres chamados Mba’ejára Tetirõ quiseram se tornar o futuro Sol, a futura Lua, a futura Estrela d’alva, a futura Plêiade. Eles, porém, não conseguiram acertar a forma correta, e se transformaram em todo tipo de coisas estranhas. Então disse o grande Verandyju para o futuro verdadeiro Sol e a futura verdadeira Lua: “Por que não participam do concurso?”. Ele já sabia que eles estavam destinados a isso.

Prontamente eles voltaram do lugar onde estavam pescando. Vieram com seu Jasuká (transportados na sua própria luz, no seu próprio veículo). Participaram do concurso e se tornaram o Sol e a Lua. Um ilumina de dia e outro de noite.

Imagem: Guarani Kaiowá por Rosa Gauditano.

Dilúvio

Jakaira Gwasu estava cantando com seu filho, porém estava preocupado com o anúncio do dilúvio. Yryvera (dono das águas) havia lhe feito uma profecia prevendo esta catástrofe, e lhe informando que isto foi decidido pelos Deuses logo após o primeiro pecado da humanidade ter surgido na terra, vindo de sua própria família. Os familiares do grande Jakaira estavam nesse momento fazendo uma grande canoa para se salvarem do dilúvio.

Um dos netos de Jakaira lhe confessou o tal pecado, afirmando ter se deitado com sua tia. Ela iria ter um filho seu e, preocupado, perguntou: “como vamos cuidar dela?”. O grande Jakaira respondeu para seu neto que sua tia ficaria debaixo de uma grande panela, fora do barco. Ali ela ficou para cuidar da água e dos animais aquáticos, por isso ela se chama Jari Rysapy, uma Jari toda molhada, cheia de orvalho. Essa panela se transformou em uma casa grande Kaiowá, também chamada Ogusu.

Quando a canoa estava pronta, todos entraram na grande canoa. Quando seus familiares e todos os animais já estavam lá, o grande Jakaira foi olhar se as águas que já estavam chegando numa grande e aterrorizante onda. A canoa começou a se mover a se erguer conforme as águas cresciam de volume. Quando a canoa chegou no topo de um pé de jataí, os familiares de Jakaira a amarraram lá.

O lugar onde brotam as folhas do jataí se transformou numa grande casa Kaiowá para os familiares de Jakaira. Ali todos viveram por quatro anos, período em que o dilúvio cobriu as terras com gigantescos volumes de água.

Imagem: Cerimônia religiosa entre os Kaiowa - Egon Shaden, 1949.

Yara, a Segunda Sereia

Quando não entrou na canoa durante o dilúvio, a filha mais velha de Jakaira Gwasu e Ha’i se transformou em Jari Rysapy, a primeira sereia, que é a protetora dos animais aquáticos. Quando ela foi colocada debaixo da panela de barro, seu pai e sua mãe deixaram milho, batata, moranga, cana-doce, abóbora e mandioca para ela se alimentar. Estes alimentos se tornaram comidas típicas do povo kaiowá.

Sua irmã mais nova foi chamada de Jari Ro’ysã. Ela também foi destinada para ser protetora dos seres aquáticos. Jari Ro’ysã tinha se casado secretamente com uma Anta, mas fazia diariamente suas obrigações diárias, seguindo um comportamento normal. Na hora do almoço e da janta, ela ia para a mata e tocava com uma madeira o pé da palmeira. Esta soava como um tambor e com isso Jari Ro’ysã chamava a anta para lhe dar de comer. Para Jari Ro’ysã, a Anta aparecia como um homem, mas ele era na verdade o Ancestral das antas, um dos primeiros seres a viver no mundo, e considerado por alguns como um demônio. Ele a tinha seduzido e ela estava apaixonada.

A mãe começou a ficar desconfiada com as idas da filha para a mata, porque ela ia sempre no mesmo horário. O irmão de Jari Ro’ysã escutou a conversa entre seus pais e não achou nada bom o que sua irmã estava fazendo. Certo dia, o irmão de Jari Ro’ysã achou a trilha que ela seguia todos os dias na hora do almoço e da janta. Encontrou também a madeira com a qual ela tocava o tronco da palmeira para chamar seu amado. Então ele tocou o tronco da palmeira como um tambor e, em poucos minutos, apareceu a Anta, que foi morta por ele com o Yvyra Para, o porrete longo feito de galho de árvore e enfeitado com urucum.

Imagem: Yara por Lukas Werneck.

Jari Ro’ysã, que não sabia nada do que tinha acontecido, estava na roça colhendo milho e batata para o amado. Quando trouxe os alimentos para casa, os lavou, socou o milho para fazer kagwĩ e assou a batata. Depois de tudo pronto, ela se dirigiu para a mata levando a comida. Chegando lá, pegou o tambor e começou a tocar, mas a Anta não apareceu. Ela tocou insistentemente o tambor, mas o amado não veio. Nesse momento, ela sentiu pingar uma gota de sangue no seu rosto. Quando levantou os olhos, viu uma genitália masculina pendurada no galho da árvore. Ela reconheceu que era a genitália de seu amado.

Ao saber da morte de seu amado, Jari Ro’ysã levantou-se, pegou em silêncio o Kambuchi Vete, o cântaro verdadeiro de cerâmica Kaiowá, e avisou sua mãe que iria pegar água. A mãe desconfiou da atitude da filha e mandou que sua irmã mais nova a acompanhasse.

Chegando à lagoa, Jari Ro’ysã convidou sua irmã para entrar na água. Ela entrou, mas tinha frio e logo quis voltar para casa. Jari Ro’ysã, contudo, não queria mais sair da água. A irmã saiu em disparada e foi avisar à mãe, pois pressentia a tragédia que iria acontecer.

Jari Ro’ysã se divertia na água, dizendo para a água que queria se transformar num ser aquático. E a água lentamente foi subindo, aceitando o desejo da moça.

Na manhã seguinte, Yryvera, ao saber do ocorrido, decidiu ir até onde estava sua filha para dizer que ela podia viver para sempre nas águas. Então, ela se tornou a segunda dona-protetora das águas, YJára (Y ou I — Água , Iara, Jari ou Jara — Dona ou senhora).

Referências: PIB Socioambiental; PIMENTEL — Kuarahy e Jasy em busca da origem: um olhar sobre o mito dos gêmeos entre os Guarani-Kaiowa e as relações de contato;

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