Mistérios Osirianos

e a Celebração de Sokar no Egito

Projeto Xaoz
9 min readDec 15, 2020

No antigo calendário egípcio, no mês de Khoiak, ocorria um festival em honra de Sokar, um deus agrícola cultuado desde o início do Período Dinástico. O mês Khoiak era o quarto mês da inundação, quando as águas do Nilo recuavam deixando para trás a lama negra altamente nutritiva onde eram plantadas as sementes que se tornariam o sustento dos antigos egípcios.

Imagem: Ptah-Sokar-Osiris ~330 AEC (Período Tardio) — Museu RISD, Providence-RI, EUA

Posteriormente, essa comemoração dos ciclos agrícolas foi absorvida por Osíris, que também possuía essas características como Deus da Vegetação. Com essa fusão e com a absorção do culto de Khenti-Amentiu de Ábidos, Osíris e o festival passaram a ter conotações não só agrícolas, mas também envolvendo todo o ciclo de nascimento — morte — renascimento dos Mistérios Osirianos.

A principal característica desse festival era o hábito de semear para que, ao brotar, o grão simbolizasse o renascimento de Osíris para reinar no Dwat, o Submundo. Essa prática fazia parte do culto de Sokar, antes de ter sido absorvido por Osíris, e o renascimento do deus espelhava-se no renascimento anual das plantações, tão necessárias para o sustento do império.

A Semeadura

Essa semeadura, a partir do Império Novo, era feita com cevada, em um ritual com conotação mágica, em figuras que conteriam esses grãos até que eles brotassem. Outra forma encontrada foi no interior de estátuas feitas de madeira do deus sincrético Ptah-Sokar-Osíris, as quais era recheadas com barro e grãos de cevada ou trigo, porém não brotavam (o plantio era meramente simbólico).

Da Época Baixa em diante, existiam as “Múmias de Grãos”, que consistiam de figuras mumiformes antropomorfas, enroladas em linho. Eram feitas figuras de terra ou barro recheadas de diversos grãos que não germinariam. Elas eram, geralmente, colocadas em pequenos sarcófagos simbolizando o funeral do próprio Osíris.

Algumas continham, ainda, miniaturas de vasos canopos. Há também outro tipo encontrado já no Terceiro Período Intermediário em diante, os chamados “Tijolos de Osíris”, que eram feitos de barro cozido com uma imagem em baixo relevo do deus, preenchida com as mesmas misturas de terra e grãos. Possuíam cerca de 24 cm de comprimento com 12 cm de largura e 6 cm de profundidade.

Imagem: Tijolo de Osíris. ~664–332 AEC (Período Tardio) — MetMuseum — NYC, NY-EUA

Os rituais Osirianos

A comemoração pública estatal, conforme estelas do Império Médio, era realizada em cinco partes:

  1. Preparativos, como a manufatura da barca Neshemet, capela votiva e figura de Osíris. A barca Neshemet era dedicada ao Deus Nun, Senhor do Oceano Primordial, e nela Osíris era transportado pelo Nilo;
  2. Procissão de Osíris, que tinha seu caminho liberado por Wepwawet, o Abridor de Caminhos, também absorvido por ele;
  3. Grande Procissão ou funeral de Osíris;
  4. Encenação da batalha de Nedit. Este local é considerado o sítio mitológico no qual Seth matou Osíris (EL-DEEN, 2014); e
  5. Retorno de Osíris, na barca Neshemet, para seu templo.

Além dessa comemoração em grande escala, que poderia durar bem mais que cinco dias a depender da época, haviam formas mais populares. Camponeses, ao colher o farro, pegavam o primeiro ramo e enterravam, lamentando-o, pois simbolizava o Pai do Povo, Osíris, que morreu para trazer a vida. Que deu seu corpo para que todos pudessem reviver eternamente. Ao brotar, esse ramo simboliza o renascimento do próprio senhor da vegetação, eterno, incapaz de morrer, sempre renascendo.

Dedicação das formas de Khoiak

Podem ser utilizadas figuras de grãos, tijolos, ou até mesmo uma simples caixa simbolizando o sarcófago, contendo terra e sementes como o corpo do deus. Pode ser feita uma caixa com terra onde serão semeados grãos que brotam facilmente, como por exemplo, rúcula, tomate, Celósia Plumosa (Rabo de Galo) ou qualquer uma com a qual você tenha experiência ou represente simbolismos úteis.

Você estará fazendo um agrado a um deus, então pegaria mal se o que você ofertou não brotasse. Particularmente, eu gosto da Celósia Plumosa, ela tem o ciclo de um ano certinho. Você semeia, ela brota, floresce, fabrica as sementes e morre. Se você deixar no vaso os ramos de sementes encostados na terra e continuar regando normalmente, ela irá florir novamente no próximo Khoiak. É uma caixa de Osíris vitalícia. Fica a dica. Já tenho a minha faz três anos.

Primeira oração: Hino de Osíris

Fonte: E. A. Wallis Budge, Lendas dos Deuses Egípcios

Como é um rito, convém tradicionalmente, você homenagear o deus central da prática. Aqui eu deixo como exemplo o Hino de Osíris. Pode ser uma oração feita do seu coração também. O que importa é ser feita a homenagem com sentimento.

Homenagem a ti, Osíris, Senhor da eternidade, Rei dos deuses, cujos nomes são múltiplos, cujas transformações são sublimes, cuja forma está escondida nos templos, cujo Ka é sagrado, o governador de Busiris, o poderoso do santuário, o Senhor dos louvores no Nomo Andjet, Regente em Heliópolis, Senhor que é comemorado na cidade de Maati, a misteriosa Alma, o Senhor de Qerret, o sublime em Mênfis, a Alma de Rá e seu próprio corpo, que tem a tua habitação em Herakleopolis, o beneficente, que é louvado em Nart, que faz subir a tua Alma, Senhor da Grande Casa na Cidade dos Oito Deuses que inspiram grande terror em Shas-hetep, Senhor da eternidade, Governador de Abidos.

Teu domínio alcança a terra sagrada, e teu nome está firmemente estabelecido na boca dos homens. Tu és a dupla substância das Duas Terras em todos os lugares, o divino Ka, o Governador da Companhia dos Deuses, e a benéfica Alma entre as almas. O deus Nu extrai as suas águas de ti, e tu trazes o vento norte à tarde, e entra em tuas narinas para a satisfação do teu coração. O teu coração floresce e tu trazes o esplendor do alimento.

O topo do céu e as estrelas são obedientes a ti, e tu fazes com que sejam abertos os grandes portões do céu. Tu és o senhor a quem os louvores são cantados no céu do sul, tu és aquele a quem são dadas graças no céu do norte. As estrelas que nunca diminuem estão sob o teu rosto e os teus lugares são as estrelas que nunca descansam. Ofertas aparecem diante de ti pelo comando de Geb. A Companhia dos Deuses envia louvores a ti, os deuses-estrelas dos Duat prostram-se, os domínios se inclinam diante de ti e os confins da terra fazem súplica a ti quando te vêem.

Aqueles que estão entre os puros estão no terror dele e as Duas Terras, todas elas, fazem aclamações a ele quando se encontram com Sua Majestade. Tu és um nobre resplandecente na chefia dos nobres, permanente no alto escalão, estabelecido na tua soberania, o poder benéfico da Companhia dos Deuses. Agradável é o teu rosto e tu és amado por aquele que te vê. Tu pões o temor em todas as terras, e por causa do amor por ti, os homens mantêm teu nome como preeminente. Todo homem faz ofertas a ti e é o Senhor que é comemorado no céu e na terra. Muitos são os gritos de aclamação para ti no festival de Uak, e as Duas Terras gritam alegremente em uníssono. Tu és o mais velho, o primeiro de teus irmãos, o Príncipe da Companhia dos Deuses e o criador da Verdade nas Duas Terras. Tu sentas sobre o grande trono de seu pai Geb. Tu és o amado da tua mãe Nut, é o mais poderoso quando derrubas o Demônio Seba. Traspassaste o teu inimigo e puseste o teu medo no teu Adversário.

Tu és o senhor das mais remotas fronteiras, o estável de coração e tuas duas pernas estão erguidas; tu és o herdeiro de Geb e soberano das Duas Terras. Geb viu as tuas esplêndidas qualidades e te ordenou que reinasse as terras (isto é, o mundo) pelas tuas mãos, tanto quanto o tempo suportar.

Tu fizeste esta terra com a tua mão, as águas, os ventos, as árvores e as ervas, o gado de toda espécie, as aves de todas as espécies, os peixes de todas as espécies e os répteis. A terra pertence por direito aos filhos de Nut, e as Duas Terras têm contentamento em fazê-lo subir ao trono de seu pai como Rá.

Tu sobes para o horizonte, tu fixas a luz acima da escuridão, tu iluminas as Duas Terras com a luz das tuas duas plumas, tu inundas as Duas Terras como o Disco no começo da aurora. Tua Coroa Branca perfura a altura do céu saudando as estrelas, tu és o guia de todo deus. Tu és perfeito em comando e palavra. Tu és o favorito da Grande Companhia dos Deuses e tu és o amado da Pequena Companhia dos Deuses.

Tua irmã Isis age como uma protetora para ti. Ela afasta os teus inimigos, evitou as estações de calamidade para ti, recitou a palavra com o poder mágico da sua boca, sendo hábil na língua e nunca parou por uma palavra, sendo perfeita no comando e na palavra. Ísis, a maga, vingou seu irmão. Ela te procurou incansavelmente.

Ela procurou por toda a terra soltando gritos de pesar e ela não tombou ao chão até encontrá-lo. Luz saiu das penas de suas asas assim como o ar para ti e gritou em desespero a sua morte para os cantos do mundo. Ela elevou os membros indefesos daquele cujo coração estava em repouso, ela tirou de ti sua essência e, desta essência, ela fez Hórus. Ela amamentou a criança em solidão e ninguém sabia onde ela estava. E ele cresceu em força. Sua mão é poderosa dentro da casa Geb e a Companhia dos Deuses regozija-se grandemente com a vinda de Hórus, o filho de Osíris, cujo coração está firmemente estabelecido, o triunfante, o filho de Ísis, a carne e osso de seu pai. O Pai da Verdade na Companhia dos Deuses, o próprio regente e os Senhores da Verdade juntam-se a ele e reúnem-se nele. Na verdade, aqueles que derrotam a iniquidade se regozijam na Casa de Geb para outorgar a posição e a dignidade divina a quem pertence e a soberania daquele quem é de direito.

Segunda oração: Tornando-se Nepri

Fonte: Texto dos Sarcófagos, feitiço 330

Segue um feitiço do Textos dos Sarcófagos que mostra bem o processo funerário de Osíris como um deus dos grãos chamado Nepri. Eu faço essa oração enquanto estou semeando as sementes na minha caixinha com terra. Lembrem-se: Estão plantando, então é aconselhável que a caixa seja preparada para isso, com furos para drenar a água, pedriscos no fundo, uma camada de areia e o substrato por cima de tudo. Assim a terra não fica constantemente molhada desenvolvendo limo e outras coisas prejudiciais para as verdinhas. Uma vez que brotarem, você pode colocar os brotos em vasos e cuidar como seu próprio Osíris Renascido.

Eu entrei em Hu, as oferendas me foram dadas e tudo vai bem comigo, pois minha irmã está na minha presença. Ó Sah, meu pai e minha mãe foram trazidos a mim. Saí de Hu, entrei em Hu, saí do Grande Batedor, retirei dele seu crescimento durante o dia e à noite por causa do barulho da terra quando ela treme por ele.

Tu deves fazer tremer aqueles que estão nos laços de Shu, e Shu se dirige aos inertes. Eu vivo e eu morro, sou Osíris, entrei e saí por meio de ti, cresci por meio de ti, floresço por meio de ti e caí por ti. Eu caí do meu lado, os deuses vivem em mim. Eu vivo e cresço como Nepri a quem os honrados amam, aquele que Geb oculta, eu vivo e morro, pois sou o farro e não perecerei.

Entrei na verdade, apoiei a verdade porque sou um possuidor da verdade. Eu fui em verdade e minha forma se elevou, eu sou aquele que é proeminente no santuário de Tenenet. Entrei na verdade e alcancei seu limite. Eu sou como Ptah, meu caminho mais alegre está preparado, eu entrei e saí, cortei os ventos na terra. Repetir quatro vezes.

Imagem: lovelyday12 — stock.adobe.com

O Khoiak não é uma lembrança da morte, é uma afirmação da vida eterna. Tudo tem seu ciclo e a morte é só uma parte desse ciclo de nascimento, morte e renascimento. O ciclo é simbolizado por Osíris, e pela renovação da natureza promovida por ele.

Observações: Nepri: Deus dos Grãos; Hu: Personificação do Verbo Divino; Sah: Constelação relacionada ao conjunto Orion e Lepus. É o Osíris cósmico; Geb: Deus da Terra; Farro: Grão semelhante ao trigo; Tenenet: Deusa ligada à cerveja, que é feita de grãos.

Por: Allan Koschdoski.

Fontes:

MARK, Joshua J. Festivais no Egito Antigo. 2017. Traduzido por Hellen Costa. Disponível em: https://www.ancient.eu/trans/pt/2-1032/festivais-no-egito-antigo/. Acesso em: 1 dez. 2020.

UNIVERSITY COLLEGE LONDON (Londres) (org.). The Festivals of Khoiak. 2003. Disponível em: https://www.ucl.ac.uk/museums-static/digitalegypt/ideology/khoiak.html. Acesso em: 1 dez. 2020.

EL-DEEN, Nehad Kamal. The site of Nedit and its importance in Ancient Egyptian Religion. The Conference Book Of The General Union Of Arab Archeologists. Cairo, p. 224–236. dez. 2014. Disponível em: https://cguaa.journals.ekb.eg/article_44450_5d389f8bbcb093c61ae58099bfc6e1fe.pdf

BIELESCH, Simone Maria. O Festival de Khoiak: a celebração dos ciclos de renascimento. Revista Angelus Novus, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 5–33, jul. 2011. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ran/issue/view/6851. Acesso em: 1 dez. 2020.

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