O Gênero na Magia

Feminino, Masculino e Não Binarismos

Projeto Xaoz
9 min readJun 15, 2018

Na Era de Câncer, o homem buscava, ainda em cavernas, reproduzir as condições do útero materno em busca de proteção e acolhimento. A fertilidade, neste momento de crescimento da humanidade e espalhamento pela Terra, era extremamente necessária ao “Crescei-vos e Multiplicai-vos”. É nessa era onde a agricultura se inicia, e a espécie humana começa a abandonar hábitos nômades para se estabelecer como sedentária. Sendo assim, a Grande Mãe era tida como peça essencial nos cultos divinos, provendo condições que levassem ao sucesso da tarefa. Posteriormente, quando o humano começa a domesticar as primeiras espécies de animais e percebe o papel do macho como inseminador, o masculino se torna uma peça também essencial, cuja principal função é inseminar e servir como ferramenta aos desígnios da Deusa.

A transição matripatriarcal se deu na Era de Gêmeos, onde surgiram as primeiras linguagens escritas e se iniciou a divisão dos primeiros idiomas, e de Touro, com o estabelecimento dos primeiros grandes impérios e com a atividade cada vez mais constante de conflitos militares.

Imagem: a Grande Mãe Nut sobre a Terra, em mural egípcio.

Na Era de Áries as sociedades adquiriram um caráter majoritariamente relacionado ao patriarca, sendo necessária a estruturação sobre a sociedade que havia se proliferado e que, sob os conflitos que se desdobravam, carecia de maior organização e desenvolvimento bélico. Os Deuses-Pais despontaram enquanto comandantes de um extenso panteão, que além das forças naturais agora incorporavam características intelectuais e psíquicas que eram humanas por excelência. Além disso, houve invasões e migrações, sempre comandadas pelo Pai da Nação em busca de territórios. Ao seu lado, tinham o feminino como elemento de balanceamento e equilíbrio, evitando ações extremamente tiranas e destrutivas.

Esta mudança do caráter matriarcal para o patriarcal nas sociedades humanas pode também ser observada em estudos linguísticos, tendo como principal indício a maior semelhança entre as raízes das palavras para Mãe do que entre as raízes das palavras para Pai nas diferentes culturas. Porém, tratam-se apenas de dois objetivos distintos, que serviram muito bem à longevidade da raça Humana, cada um a seu tempo.

Gênero Feminino na Magia

Nas sociedades matriarcais, as divindades mais importantes eram geralmente uma Deusa Mãe e suas diversas facetas: a donzela, que ainda não é mãe, a matriarca, que tem papel fundamental na vida social da comunidade, e a anciã, a mulher que além de mãe já é avó e por ter seu papel como genitora dos genitores, e é representada como o grande repositório de sabedoria. A iniciação à vida adulta era mediada pelo retorno ao útero seguindo de um novo nascimento, e este útero era simbolizado pelo labirinto, em Creta, ou por cavernas e templos, em outras tradições iniciáticas. Descer ao útero representa o renascer em vida, a morte da infância para o florescer da vida adulta, o descobrimento da sexualidade e do potencial de fertilidade. O útero, por sua vez, simboliza o próprio inconsciente, que permite que a pessoa se conheça melhor e assim desempenhe um papel mais adequado à função à qual se destina.

Imagem: a Vênus de Willendorf, do período paleolítico.

Com base neste caráter de reflexão e fertilidade, unido ao fato de as mulheres terem desde então desempenhado um papel mais maternal e receptor nas sociedades, como coletoras de vegetais e cuidadoras dos filhos (atividade intrinsecamente ligada à amamentação, por exemplo), os arquétipos ligados à manutenção, ao acolhimento e à reflexão foram associados ao feminino. Sendo assim, o caráter energético feminino foi relacionado ao próprio genital feminino, intermediado pelo papel social das pessoas com vagina e útero, desde então chamadas “mulheres”.

Entre os principais símbolos do sagrado feminino, podem ser citados a triplicidade da Deusa, enfatizada pela Wicca e em tradições anteriores, as deusas Gaia e Deméter na Grécia, Vênus e a Lua na astronomia (a primeira se tornando o próprio símbolo do feminino, e a última ligada ao ciclo menstrual), a Prata na Alquimia, o Yin no Tao, a Asherah semítica, as deusas éguas Celtas. No Golfo de Benim e na Nigéria, em alguns contos mais antigos, Iemanjá é citada como a grande Mãe, parindo o Cosmos no início dos tempos. Nas primeiras cosmogonias egípcias, por sua vez, é a deusa Nut que cobre a Terra, representada pelo deus Geb (papel que se apresenta invertido na Grécia). Há também deusas solares, como a Amaterasu Xintoísta (em oposição ao caráter majoritariamente masculino do Sol em outras culturas).

Gênero Masculino na Magia

Já nas sociedades patriarcais, as divindades maiores passaram a ser um Deus Pai com suas diversas manifestações, e o papel criativo de doador da vida passa a ser representado pelo masculino e seu fluido seminal, ao invés do útero nutriz e seu “ovo primordial”. A iniciação à vida adulta passou a ser realizada principalmente mediante rituais que envolviam a caça, a saída do jovem da casa dos pais, assim como testes de bravura e atletismo, como as Olimpíadas, apenas para homens. O falo representava virilidade e potencial criativo, inseminando ideias no mundo físico.

Imagem: representação de Osíris com falo ereto na capela de Ptah-Sokar.

Este caráter de comando e iniciativa, aliado à atividade de caça que era geralmente realizada pelos homens (uma vez que as mulheres estavam cuidando dos filhos nessa nova sociedade), fez com que os arquétipos ligados à atividade, ao comando e à incisividade fossem associados ao masculino. As ferramentas de poder e justiça, como espadas, martelos, cetros, cajados e lanças, assumem a simbologia fálica, onde o líder passa a ostentar não apenas o seu falo fisiológico mas equipamentos que permitiriam expor e “fortalecer” seu falo psicológico e social, empoderando o masculino com caráter ativo. O papel do órgão sexual masculino tornou-se símbolo para este caráter, intermediado pelo papel social das pessoas com pênis e testículos, desde então chamados “homens”.

Como representantes do sagrado masculino podem ser citados Cernunos, Pan, Marte e o Sol na astrologia (sendo que o símbolo do primeiro tornou-se representativo do masculino), o Ouro e o Ferro na alquimia, o Yang no Tao. No Egito, Osíris manifesta o poder criativo (muitas vezes representado pela terra fértil deixada pelas cheias do Rio Nilo), e no Golfo de Benin e Nigéria o falo de Exu é representante deste caráter. Na Grécia, Urano, que antes havia sido gerado por Gaia sozinha, submete a deusa mãe criadora e passa a governar o mundo. Em seguida, é morto por seu filho Cronos e com seu sêmen dá origem a vários outros deuses e deusas, iniciando uma dinastia patrilinear de poderosos Deuses-Pai. Pode ser citado aqui também o El semítico, que seria o deus que daria origem aos monoteísmos onde o sagrado feminino seria suprimido ou convertido em natureza profana e dessacralizada.

Gênero Não Binário na Magia

Assim como as divindades primordialmente Femininas ou Masculinas, existem outras energias que são personificadas na forma de entidades não binárias, assexuadas, andróginas ou mesmo hermafroditas. Geralmente provêm de geração espontânea, como Kepher, no Egito, criado a partir da própria palavra, e Caos, na Grécia, que gerou espontaneamente outros deuses. Além disso, Atum e Rá muitas vezes são descritos como não binários e portadores de ambos os gêneros, e Hapi é tido como intersexual.

O caráter não binário (ou seja, nem completamente masculino e nem completamente feminino) se intensifica na figura do Hermes grego, do Mercúrio romano e alquímico, e do deus Hermafrodito (também grego). O vidente Tirésias é outro exemplo de figura importante com caráter dual.

Imagem: Mercúrio mediando o equilíbrio dos gêneros em tratado alquímico.

O Orixá Logun-Edé, na tradição brasileira do Candomblé, vive seis meses nas matas caçando com Oxóssi e seis meses nos rios pescando com Oxum, podendo inclusive em algumas versões dos contos modificar sua aparência. Oxumarê é outro exemplo de entidade não binária nesta cultura.

Além do caráter dual simultâneo, outras divindades alternam entre os gêneros dependendo da situação. Este é o caso de várias entidades hindus, além do deus Nórdico Loki, que não só mudava de gênero como também de espécie, chegando a se transformar em égua para cruzar com um cavalo e dar origem a Sleipnir, a montaria mais rápida de Asgard.

Equilíbrio entre Gêneros

A capacidade de equilíbrio se torna importante à medida em que as sociedades alcançam um status-quo, estando já estabelecida em sua região geográfica (o que só foi possível pelo uso do caráter Feminino e do Masculino em momentos específicos) e há espaço para o surgimento de sábios que transcendam a simples tarefa de sobreviver, passando a refletir sobre assuntos de mais alta esfera. O equilíbrio entre os gêneros é apontado como o caminho para a evolução, e isto não significaria apenas andar pelo caminho do meio, mas sim utilizar de um e de outro quando for necessário.

Uma das denominações para tal equilíbrio é o Hieros Gamos, o casamento sagrado: união entre os princípios energéticos feminino e masculino.

No Hermetismo, este conceito é abarcado pela Lei do Gênero, que afirma que “Tudo tem em si os princípios masculino e feminino”. Em algumas aplicações, um dos princípios está mais acentuado do que o outro, mas devido à existência intrínseca dos dois princípios será sempre possível sintonizar as frequências para um ponto central, ou mesmo para o extremo oposto, caso desejado.

Imagem: Secretum Secretorum (Os Sete Passos), 1140.

Gênero enquanto construção social

Como já foi comentado, nos primórdios da sociedade, os papeis sociais eram extremamente influenciados pelas características anatômicas à medida em que as atividades de inseminação, gestação, concepção, amamentação, cuidados com os filhos, coleta e caça eram realizadas. Porém, alguns destes papeis não são tão rígidos nas sociedades mais recentes. Há uma desvinculação dessas atividades em relação aos genitais e aos gêneros, na medida em que (com óbvia exceção à concepção) passam a ser realizadas por técnicas novas, ou mesmo compartilhadas entre os pais.

Sendo assim, percebe-se que os conceitos de “homem” e “mulher” tratam-se de construções sociais, que passam a ser mais limitantes do que úteis à medida em que a sociedade evolui e não necessita desta definição ferrenha de papeis. Genitais não são mais expostos à sociedade, e a aparência facial ou corporal, completamente moldável (por meio de cosméticos, por exemplo), falha miseravelmente como possível critério absoluto para esta classificação.

Em outro aspecto, a própria característica anatômica dos genitais não é puramente binária. Embora com menor ocorrência, além das variações entre os genitais masculino e feminino ditos “absolutos”, existem os intersexuais, com características mistas. Esta não binariedade anatômica, mas também a não binariedade psicológica, são conhecidas desde tempos imemoriais, como citado acima em relação ao deus Hermafrodito, e também quanto às Hijras na Índia, e os “dois-Espíritos” em inúmeras tribos indígenas norte-americanas.

Imagem: a divindade andrógina Baphomet, por Eliphas Levi.

Gênero no novo Æon

Por fim, observando-se todas as questões relacionadas a gênero na magia, é importante ter em mente que cada pessoa é um microcosmo. Mulheres, Homens e Pessoas não Binárias possuem em si o potencial de realizar qualquer atividade, mágica ou não, e as peculiaridades que podem surgir por questões anatômicas influenciam meramente no método ritualístico, mas não no caráter energético ou no potencial de quaisquer dos corpos e/ou gêneros.

No novo Æon, caem as barreiras, e tudo se compartilha e se mistura no turbilhão do Aquário, visando à evolução e à libertação das amarras mundanas. Por andarem em cardumes, os Peixes se sentem poderosos, mas quando a própria água da mudança é o ambiente onde estão imersos, estes devem escolher entre entender as correntes para poder seguir o fluxo, ou afundar junto com o antigo Æon.

Por: F.L. Surati, Ghaio e RoYaL.

* Esperamos poder aprofundar as questões específicas referentes a gênero masculino, gênero feminino e não binarismos em textos posteriores. Aguardem!

Referências: Reginaldo Prandi — Mitologia dos Orixas; Junito Brandão — Mitologia Grega; Qabalah, Qliphoth and Goetic Magic — Thomas Karlsson; A Alma Imoral — Nilton Bonder; Mirella Faur — O Anuário da Grande Mãe.

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