Odoyà!

Representações de Iemanjá na trama das imagens

Projeto Xaoz
6 min readAug 14, 2018

“Análise: exame minucioso de uma coisa em cada uma de suas partes; separação dos princípios componentes de um corpo ou substância; exame que se faz de uma produção intelectual = crítica, estudo” — dicionário Priberam.

As histórias dos orixás possuem variações, mas sempre há um eixo recorrente que estrutura o mito. No caso de Iemanjá, o pesquisador Reginaldo Prandi coleta 18 mitos. De forma geral, porém, Iemanjá — também conhecida por Yemanjá, Yemaya, Iemoja, Dandalunga, Kaiala, Janaína, Inaê, Sobá, Oloxum, entre outros epítetos — possui características recorrentes de Grande Mãe ou Mãe das Gerações. É a água que vivifica, e oferece amparo à maternidade, por ser a Mãe da Vida. Segundo Prandi, possui associações no Brasil com Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora Aparecida.

Imagem: Iemanjá, créditos na foto.

Quando vestida, Iemanjá é apresentada usualmente com vestido branco, azul ou verde. O branco está relacionado simbolicamente à pureza e à força motriz e matriz — atributos compatíveis com a Grande Mãe. Já o azul representa o mergulho do olhar até o infinito, sem obstáculos, de forma tranquila. Neste sentido, o mar e o céu se encontram nas representações de Iemanjá por meio do azul, e o real e o imaginário podem estabelecer contato.

Na maioria das representações, a linha do horizonte ao fundo demarca os limites entre o céu e o mar (ambos azuis), sendo reforçada pelas mãos da imagem, também formando uma linha horizontal. O eixo das mãos, por sua vez, forma um triângulo para cima, em conjunto com a cabeça, e um para baixo, até onde estariam os pés. Em algumas representações, o olhar da imagem auxilia o leitor, que acompanha a forma com seus olhos guiado pelos olhos da imagem. Esta forma pode até mesmo evocar o aspecto da vesica pisces, vagina ou yoni, que dá origem a toda a manifestação da forma, e que dá à luz o Cosmos.

Sincretismo

Destaca-se, na maioria dos casos, a sensualidade na representação do Orixá, com seu vestido marcando o contorno do corpo, e o joelho trazido para a frente ressaltando sua forma. Neste sentido, também, apresenta muitas semelhanças com as construções imagéticas de Nossa Senhora. As diferenças, neste caso, estariam na dessensualização das últimas, pela ocultação dos cabelos e do colo, além dos mantos, que aplicam um aspecto de mais avançada idade. Os cabelos soltos de Iemanjá, por outro lado, evocam vitalidade e sensualidade, além do aspecto de força.

Imagens: Nossa Senhora das Graças (E), Iemanjá (C) e Nossa Senhora dos Navegantes (D).

Outro ponto que chama atenção nas mais famosas representações de Iemanjá é o fato de sua pele ser branca. Sobre este aspecto, é suscitada a interpretação de que, sendo branca, Iemanjá poderia ser alçada pelos artistas da época a um panteão de destaque, assim como a Nossa Senhora. O autor teria buscado, então, erguê-la ao patamar do sagrado e socialmente aceito em alguns grupos de cultura hegemônica branca, promovendo uma entronização do Orixá. A ideia de que há uma audiência com expectativas é ressaltada por Geertz em seu trabalho sobre a arte como sistema cultural, e entende-se que isso se aplica no caso em pauta, quando Iemanjá é representada sob cânones europeus supostamente “facilitadores” nessa “permissão” de convivência social.

A sincretização na cultura afro-brasileira com a Nossa Senhora dos Navegantes se dá, por sua vez, não somente pela representação, mas também pelos elementos que a compõem. O barco que carrega a Virgem Maria é também o barco que leva as oferendas a Iemanjá. Segundo Lody, “o barco de Iemanjá é um objeto devocional coletivo e diferente de outros objetos, pois é um objeto de oferecimento, cumprindo um preceito religioso”.

Simbologia

Geralmente, Iemanjá é representada utilizando o adê com a estrela de cinco pontas, por vezes com um colar. A lua e as estrelas, assim como pérolas e conchas, são outros símbolos comuns em suas representações. Todos esses símbolos são ligados ao universo feminino, ao princípio Yin, e mais especificamente à fertilidade da própria água. Além disso, estes elementos são citados em mitos de Iemanjá, como naquele em que ajuda Olodumare na criação no mundo, e toma sua morada junto a “algas e estrelas-do-mar, peixes, corais, conchas, madrepérolas”.

Neste mesmo mito, Iemanjá ajuda Olodumare a dominar o poder do fogo do fundo da terra, entregando-o a Aganju, Mestre dos vulcões. Neste sentido, a vela é um significante poderoso do fogo controlado e que se transforma em centelha de vida para cada ser. Segundo Juana dos Santos, Iemanjá tem um papel forte como contraparte de Xangô, acompanhando seu assento na maioria dos terreiros. O fogo seria um resultado dessa interação, e sua cor vermelha está ligada tanto ao sangue menstrual quanto ao sangue que circula nas veias, com caráter de iniciativa e realização.

Imagens: Iemanjá por Bê Sancho (E), Orlando Sant’Anna (C) e Jonas Felipe Machado (D).

Senhora da Mente

“O mar serenou quando ela pisou na areia. Quem samba na beira do mar é sereia” — letra e música de Candeia, gravada por Clara Nunes.

Em outras representações, Iemanjá toma o caráter de sereia, e além do caráter materno possui outro caráter, destrutivo, controlável por meio de oferendas e súplicas. Esta dualidade entre maternidade e sensualidade é refletida, no caso da sereia, na dualidade entre mulher e peixe. O espelho, também muito associado ao Orixá e um de seus objetos de poder, reforça este caráter misterioso, e serve para práticas de divinação por refletir a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência.

Possui o poder de influenciar as cabeças dos homens, sendo também a senhora das cabeças. Diz-se em um dos mitos que Olodumare solicitou aos outros Orixás que lhe trouxessem presentes; somente Iemanjá trouxe uma cabeça de carneiro, e ao ver aquilo Olodumare exclamou: “Cabeça Trazes, Cabeça Serás”. Iemanjá se torna, então, senhora dos Oris, protetora das cabeças (as águas retornam aqui como significantes do inconsciente).

Imagem: Iemanjá, autor desconhecido.

Considerações Finais

Conclui-se que o texto imagético é composto por elementos que devem ser analisados frente ao contexto apresentado — aspectos internos são encaixados com aspectos externos em busca de um entendimento mais amplo. Isso se aprofunda no caso da arte pictórica de matriz africana diaspórica, sendo que o próprio material de construção da arte (neste caso, pintura sobre tela) dita as regras do que será construído, bem como a intenção e o uso pretendido (neste caso, não o uso ritual, mas o representativo).

Surge daí a necessidade de uma Pedagogia da Imagem que busque olhar as obras na coerência de uma lógica interna em que se exprimem valores e mensagens com uma outra ordem e outras roupagens. Sendo assim, não seria possível aplicar diretamente os cânones da arte europeia ocidental sobre outra cosmogonia. Por outro lado, os critérios de análise devem buscar, por trás da representação, os símbolos, reconstruindo toda a rede de significados intrínseca aos mesmos na cultura originária.

Por: RoYaL, como base no livro de Ana Valéria de Figueiredo da Costa.

Referência: Ana Valéria de Figueiredo da Costa — Odoyá! Representações de Iemanjá na trama das imagens.

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Este projeto visa compilar, analisar e desenvolver as bases do conhecimento de sistemas mágicos. Leia mais em: www.xaoz.com.br

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