Ostara

O Renascer das Flores

Projeto Xaoz
11 min readSep 22, 2020
Monet — Primavera, 1886.

Ostara é celebrada no equinócio de Primavera, momento onde o dia e a noite têm a mesma duração e as forças das polaridades se encontram em equilíbrio.

Existe muita contradição sobre as origens históricas desta celebração na antiguidade, sobretudo quanto à deusa Eostre, citada no século VIII d.e.c. por Bede, monge e historiador da Inglaterra antiga.

Observam-se algumas deusas “austrais” que estão ligadas com o Leste e a Aurora, representando a luminosidade que retorna, e que estão presentes nos achados arqueológicos da Germânia.

Efetivamente, Eostre é uma deusa que emerge durante o Romantismo Alemão, onde pela primeira vez a ela são atribuídos simbolismos reprodutivos como os dos ovos, aves e lebres.

Em suma, esta celebração reforça os elementos de fim do inverno que se apresentaram na celebração de Imbolc, onde o leite e os animais recém-nascidos figuram. Festivais similares também são encontrados na Roma Antiga, e duas celebrações distintas podem ter conexões com a mudança de estação e a chegada da Primavera:

  • A Liberalia, celebrada de 16 a 17 de março, onde um casal de deuses, Liber Pater e Liberalia, ligados à fertilidade, se apresentam. São normalmente associados a Baco e Ariadne, princesa de Creta que depois de ser rejeitada por Perseu seria abraçada por Dionísio/Baco. Nesta celebração, o uso de máscaras e o aspecto sensual e sexual parecem ter dado origem ao Carnaval. Também na Liberalia ocorre o rito de passagem para a idade adulta dos jovens romanos.
  • A Hilaria, celebrada entre 16 e 28 de março, na Frígia. Neste festival é celebrada Cibele, uma deusa mãe, e Attis, seu consorte e filho. Este ritual tem relação com a castração, morte e renascimento de Attis, que representa a vegetação. O culto de Cibele e Attis foi absorvido em Roma e se espalhou por todo território do Império, saindo do Oriente e chegando até as partes mais ocidentais, como a Gália e a Britânia.

Origens

Monet — Primavera no Sena, 1878.

Embora careçam de comprovações históricas, os movimentos de revivalismo celta atribuíram o momento do Equinócio Vernal a uma variedade de deusas associadas aos rios e fontes minerais. Uma destas deusas é a gaulesa Sequana, protetora da nascente do rio Sena, retratada em um barco com cabeça de pato (que pode ter uma esfera ou ovo na boca) na proa. A deusa recebia oferendas de imagens feitas em pedra e madeira dos órgãos aos quais os fiéis desejavam receber a cura de enfermidades, além de frutas e dinheiro, e era retratada acompanhada por animais como cães e pássaros de estimação (que poderiam ser parte da oferenda votiva). Dentre as principais doenças que as pessoas manifestavam desejo de cura estavam aquelas do sistema respiratório e os problemas de visão.

Sirona é outra deusa gaulesa e do vale do Danúbio, também associada às fontes de águas, com poderes curativos, cuja etimologia do nome vem do radical “ster-” protocéltico, que significa “estelar ou astral”, e que por conta da sonoridade similar do radical com o nome da deusa Eostre foi associada por pagãos modernos ao equinócio de primavera. Essa deusa aparece relacionada com cobras e com ovos, ora acompanhada por Grannus, deus solar retratado com barba e sobrancelha espessas (o que lhe rendeu o epíteto de “aquele com olhar penetrante” que reforça os atributos de deus solar que “tudo enxerga”) e associado ao calor do verão, também regente de fontes de águas termais e estações balneárias.

Outro deus associado a época é Borvo (ou Bandua, Bormo, Bormanicus, entre outros nomes), que também é retratado acompanhando Sirona (ou Bormana), algo muito comum entre inúmeros povos celtas continentais, este tendo chegado até a península ibérica, onde o termo “Bandua” é corriqueiramente usado para se referir a deuses cultuados pelos galaicos e lusitanos. Sincretizado a apolo, rege as fontes de águas “borbulhantes”, aos veios de minerais e tem seu nome encontrado junto a diversos rios e fontes. Estudiosos acreditam que, pela origem etimológica, o nome do deus esteja associado aos verbos ‘ferver’ e ‘‘borbulhar’, o que conectaria com o deus irlandês Dian Cecht, médico dos Tuatha Dé Danann, que fez o rio Barrow (em irlandês, Bearú, borbulhante) ferver e possuía uma fonte de águas curativas e cercada de plantas medicinais.

Outra possível origem da tradição pagã possível é Nowruz, o ano novo persa. Nesta tradição, de um povo indo-europeu, temos a presença do mitema do renascimento da vegetação, e os zoroastristas pintavam ovos. Com isso, nos aproximamos de uma deusa proto-indo europeia, Xausos ou Aeusos, que seria a deusa ancestral da Aurora e do (re) início dos ciclos, e que linguisticamente se conectaria com as deusas austrais encontradas entre os povos germânicos e com a Ostara apresentada por Bede. Simbolismos adicionais podem ser apresentados através da fênix, e do ciclo eterno de morte e renascimento.

Américas

Monet — Flores da primavera, 1864.

Para os incas, próximo ao Equinócio de Primavera era celebrado em Cuzco um festival sob o nome de Mayucati, onde os membros dos povos indígenas da região, sobretudo os incas, se desfaziam dos restos de sacrifícios e cinzas de rituais anteriores e faziam oferendas no rio Huatanay, sob a crença de que este realizaria seus desejos. Eram construídas pequenas represas no rio Capimayo e entre as oferendas havia um sortimento de todos os itens consumidos pela sociedade que vivia em Cuzco: alimentos de todo tipo, cestos de coca, vestimentas, penas, ouro e prata, flores. Ao pôr do sol se sacrificava e se queimava um animal, cujas cinzas dariam início ao rito de oferendas, que depositadas nas pequenas represas seriam abertas uma após a outra em agradecimento ao “Fazedor” pelo ótimo ano que passou e como pedido por um novo ano melhor.

No período entre setembro e outubro os indígenas Araweté concluíam o período de fermentação do Cauim, preparado em junho após a colheita do milho maduro. Cauim é uma bebida alcoólica fermentada preparada com fins cerimoniais, como ritos de passagem. Outros povos indígenas têm suas próprias variedades de cauim, feitas de outros ingredientes, como a mandioca e o caju. O preparo da bebida possui uma série de tabus, devendo ser feito em abstinência sexual e em jejum alimentar e os ingredientes eram mastigados pelas mulheres e colocados para ferver. Entre os KA’apor, a Festa do Caium acontece no início de outubro, na lua cheia após o equinócio de primavera, e nela as crianças recebem seus nomes, as mulheres fazem seus ritos de passagem para a idade adulta e são realizados casamentos.

No estado do Pará, no Brasil, ocorre o Festival de Çairé, que sincretiza tradições indígenas locais e cristãs. Neste festival são erguidos mastros e enfeitados com folhas e frutas que seguem em procissão pela cidade de Santarém. Também é realizada a “Batalha dos Botos”, muito parecida com a Festa dos Bois de Parintins, onde o Boto Tucuxi e o Boto Cor de Rosa competem em desfiles de carro alegórico e fantasias temáticas. Na festa, parte da temática reproduz o mito onde o Boto se manifesta na forma humana trajando um terno branco para seduzir a cabocla e retornar ao rio sob o ritmo local da música carimbó. Ao fim do festival, homens e mulheres, ou entre moradores e turistas, que disputam para ver quem tem mais força para derrubar os mastros de Çairé.

Morte e Renascimento

Monet — Primavera em Argentuil, 1872.

Ainda que não ocorram exatamente no equinócio de primavera, mitos egípcios e mesopotâmicos de morte e renascimento são comumente utilizados pelos pagãos modernos nesta data. Esses povos acreditam em um calendário de apenas três estações, relacionado com a vida dos grandes rios da região e com a estação de chuva/cheia do rio, vazante onde o lodo do rio fertiliza a terra e aridez com a baixa dos rios, logo esses mitos ocorrem na transição da cheia para a vazante, ocorrem no calendário comum por volta do fim de agosto e início de setembro.

Entre os sumérios e babilônios, se observa algo correlato com os mitos de morte e renascimento de Damuzi (Tammuz) e Inanna (Ishtar). Com a morte de seu esposo, a deusa Inanna desce ao submundo para clamar à sua irmã mais velha Ereshkigal, senhora da morada dos mortos, que possa trazer seu amado de volta à vida. Para ultrapassar os sete portões do submundo, Inanna é obrigada a se despir de suas vestes e proteções mágicas, sendo apresentada nua frente ao trono da rainha dos mortos e condenada à morte, suspensa em um gancho. Graças a um de seus mais fiéis conselheiros, Inanna consegue ressuscitar com a ajuda de duas figuras sem gênero enviadas pelo deus Enki, que reivindicam o direito da deusa a vida. Após o incidente, Inanna e Ereshkigal passam a se alternar cada uma por seis meses como rainha regente do submundo.

Para os egípcios, o mito da morte e ressurreição de Osíris encontra ecos similares com os ciclos de secas e cheias. Osíris é assassinado por seu irmão Set, que está associado a secura do deserto, e posteriormente é também esquartejado, para impedir que sua esposa Ísis o ressuscite. Após recolher quase todos os quatorze pedaços de seu consorte, Ísis pede para que Toth faça um pênis em ouro, a parte faltante que foi perdida no Rio Nilo, e consegue trazer seu amado de volta à vida. De forma similar a Inanna, Osiris agora passa a reinar sobre os mortos, e sua coroa é por direito de Hórus, filho legítimo do deus com Ísis. Por outro lado, a conexão do pênis de Osíris perdido com o Rio Nilo, que é a fonte da fertilidade para a civilização egípcia que vive cercada de desertos, faz com que o papel de Osíris como deus ligado à vegetação e às inundações do rio representem o renascimento da natureza.

Muito parecido com o mito de Inanna e Osíris é a narrativa sobre a morte e ressurreição do deus semita Baal. Baal, após enfrentar o deus dos mares Yam é coroado rei do mundo e reconhecido pelos demais deuses, porém o irmão de Yam, o deus dos mortos Mot acusa o jovem deus de causar o desequilíbrio no mundo. Mot convida Baal para um banquete no mundo dos mortos, com o intuito de assassiná-lo. O corpo dilacerado de Baal é encontrado pela deusa Anat, que pranteia a morte do noivo e companheiro de batalhas. Enquanto Baal está morto, o deus supremo El nomeia Attir como rei do mundo, mas este deus não consegue trazer a fertilidade para a terra, causando escassez e fome entre os humanos. Triste com o desespero e sofrimento da humanidade, El sonha com o renascimento de Baal, e esse sonho permite o renascimento do deus. O mito de Baal, um deus relacionado às chuvas, aos raios e às tempestades tem conexão com a topografia e a hidrografia da costa mediterrânea do Oriente Médio, pouco irrigada por rios e muito dependente das chuvas.

Como celebração moderna, Ostara representa o renascimento e o fortalecimento da vegetação, o retorno das espécies migratórias, o retorno da vida vegetal e animal. Justamente por isso recorremos não apenas à noção europeia e neopagã de primavera, mas também às noções de estações fluviais observadas pelos povos do Egito e Oriente Médio, também usadas por civilizações indígenas no Brasil. A combinação entre as “quatro estações” e o “ciclo das águas” incentiva portanto novas formas de pensar e interpretar os ciclos naturais que interferem na vida humana e são associados a uma visão de natureza sagrada.

Práticas Medievais e Modernas

Monet — Mulher lendo, 1872.

A celebração com os ovos pintados, agora replicada por muitos neopagãos, é historicamente rastreável até as tradições da Igreja Ortodoxa no Leste Europeu e pode ter precedência eslava, visto que se origina na região onde este povo era maioria étnica. Isso desmente a narrativa de Eostre como deusa de origem germânica, mas pode dar pistas de que uma deusa eslava veio do Leste e foi cultuada por estes povos. As principais candidatas para a origem desta deusa, segundo Grimm, são a eslava Vesna e a Lituana Vasara.

No hemisfério Sul, a comemoração moderna do Dia da Árvore ocorre no Brasil em 21 de setembro, e se aproxima do calendário pagão com o equinócio vernal. A data, criada nos EUA no século XIX, é celebrada naquele país em 21 de março como Dia Mundial das Florestas e da Árvore, e visa a conscientização ambiental e posteriormente passou a ser celebrada em diversos países com outras datas, e tem também como finalidade promover o reflorestamento, com distribuição de mudas. Devido à dificuldade de plantio de árvores no Brasil no mês de março, que é a estação das secas no norte e nordeste do país e das chuvas intensas no sul e sudeste, características que prejudicam o crescimento e fortalecimento das novas mudas, foi decidido mover a data para o mês de setembro, onde as variáveis ambientais e climáticas são mais favoráveis ao plantio. Outra data cívica internacional que se aproxima dessa visão, o Dia da Terra, celebrado em 22 de Abril, tem a pretensão abrangente de conscientizar sobre a proteção do meio ambiente, da biodiversidade e criticar a poluição, contaminação e desmatamento.

Os japoneses celebram o Hanami, ou Festival das Flores de Cerejeira, como rito de passagem para o início da primavera, que apesar de ser uma data cívica moderna tem conexão com a transição do inverno para a primavera e com a brevidade da vida, simbolizada pela fragilidade das flores das cerejeiras. As pessoas se reúnem em parques públicos e visitam o túmulo de entes queridos, além de consumir alimentos típicos que usam as folhas e flores de cerejeira em seu preparo. A tradição xintoísta acredita que os espíritos divinos que habitam as cerejeiras trazem boas colheitas e promovem boa sorte nos negócios e a floração das árvores era um presságio sobre a qualidade das colheitas que viriam naquele ano.

O Renascer das Flores

Monet — Primavera em Giverny, 1890.

Diante de uma crise climática global, cada vez mais próxima da irreversibilidade, e de governantes irresponsáveis que não apenas negam sua existência mas promovem práticas que aceleram seu agravamento, aproveitar momentos de celebração do renascimento da natureza aparece como uma escolha inteligente de praticantes de magia para empoderar novamente a natureza no cenário social urbano. A conscientização de que o atual estado da natureza pode acarretar em um possível “não renascimento” em um futuro próximo deve estar entre as preocupações de quem se entende como parte de uma religiosidade que sacraliza os ciclos naturais e a força da Terra.

Pensando em como a celebração nos foi apresentada na contemporaneidade, não parece haver incoerência em incorporar o simbolismo comum das lebres e dos ovos coloridos nos ritos, mas é importante reforçar o importante aspecto da deusa da Aurora que vem do Oriente na Primavera e dos deuses e deusas que morrem e ressuscitam, dando início a ciclos de cura e renascimento que podem ser utilizados magicamente. O simbolismo da cobra que troca de pele e está relacionada com a medicina reforça o momento de reforçar a saúde e aproveitar a energia para fazer com que pequenos renascimentos possam ocorrer em nossa vida pessoal. Cabe ressaltar também que o chocolate, fortemente conectado a este feriado no Ocidente contemporâneo, era uma bebida sagrada dos Olmecas e Maias utilizada para combater o cansaço, como afrodisíaco e estimulante ritualístico — atributos coerentes com a data, apesar da origem totalmente díspar.

Texto por: Projeto Xaoz.

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