Samhain
e o Regressus ad Uterum
Desde tempos imemoriais o ser humano aprendeu a utilizar a natureza como referência para processar e descrever os próprios processos de vida, crescimento e morte. Olhar para o mundo externo permitiu aos nossos antepassados desenvolver formas peculiares de magia nas quais esse mundo externo se conectava ao mundo interno. Uma dessas celebrações mais primordiais acontece no “meio do outono”, pelo menos como na modernidade hoje descrevemos, mas que para a maior parte dos povos anteriores era o marco real de separação entre a parte clara e a escura do ano, o fim dos tempos de bonança e o recolhimento da natureza.
Significado Prático
Os irlandeses davam ao período do ano que trataremos neste artigo o nome de Samhain, comemoração essa resgatada pela Wicca na sua Roda do Ano. Descreve o momento de recolhimento da natureza, quando as copas das árvores ficam completamente sem folhas, as primeiras geadas acontecem matando aquilo que resta nos campos e alguns dos animais selvagens que convivem conosco migram para lugares mais quentes ou iniciam o processo de ganho de massa para entrar em hibernação. Sociedades agropastoris iniciam com ferocidade o recolhimento dos últimos frutos e grãos que restam em suas plantações, tosquiam a lã das ovelhas e abatem parte do rebanho para salgar suas carnes, produzem compotas e conservas de frutas e vegetais e fazem aquela que provavelmente será a última refeição com carne e vegetais frescos abundantes até o final do inverno.
Por conta do desaparecimento da fauna selvagem e o abate dos rebanhos domésticos, o período acaba sendo associado pelos camponeses com a morte da natureza. Quando o homem descobre a arte de guerrear o período acaba se convertendo no último momento para as batalhas campais e cercos, e se a vitória na guerra não for alcançada, ela deverá ser interrompida para a próxima primavera ser retomada. Não seria estranho então que a data seja associada aos ancestrais, de todas as espécies, que passaram a habitar do outro lado do véu entre os mundos.
Roda do Ano e Festivais
No hemisfério norte, no dia 31 de outubro, no hemisfério Sul, em 1º de maio (hoje datas fixas, mas provavelmente era um período definido pela lunação), chega a hora de honrar e celebrar mais uma vez a morte e aqueles que vieram antes de nós. Também é visto como um fim que antecede ao novo início, sendo tratado por variadas tradições como o Ano Novo.
Sincretizada com a comemoração cristã de All Hallows Tide (Noite de Todos os Santos) ou All Hallows Eve (Véspera de Todos os Santos), ancestrais do popular Halloween, onde tradicionalmente as famílias buscam proteção contra os espíritos vagantes mal-intencionados e podem entrar em contato com os seus falecidos queridos mais uma vez. Alguns povos, como os galegos (que vivem entre Espanha e Portugal) celebram o Magusto, festa de colheita das castanhas, onde se ofereceria uma ceia aos antepassados.
Mitologia Associada
Um dos mitos celtas, da Irlanda, nos conta que é nesta data que Dagda, um poderoso deus ligado a vida e morte se encontra com Morrigan, deusa ligada à guerra e ao outro mundo, e dessa união sexual poderosa o véu entre os mundos fica estremecido. Assim, neste dia o Bom Deus atravessa os “portais da morte” e despeja sua energia vital, adentrando simbolicamente e literalmente no caldeirão da Deusa e sua escuridão.
Outros mitos em diversos outros povos, como no País de Gales, na Alemanha, nos Países Escandinavos e em outras regiões acima do Trópico de Câncer, nos retratam deuses e deusas em cortejo com sua matilha de cães fazendo uma vigorosa caçada que abarcaria vivos e mortos; abaixo do Trópico de Câncer normalmente temos retratado o mistério de alguma divindade ligada a vegetação e fertilidade se recolhendo para o mundo infernal enquanto a terra se converte em esterilidade.
Deuses como Gwyn ap Nudd, Odin, Bertha, Baba Yaga são também são celebrados.
Essa data passa então, de uma forma mais abrangente, a marcar a existência de portais de acesso ao inconsciente (que são a contraparte do submundo na nossa psiquê), e baseado na Lei Hermética da Correspondência, assim como na natureza externa a vida míngua em consequência da diminuição da luz disponível e a força vital das plantas se concentra nas raízes, acontece também com nosso movimento psíquico, que começa a dar uma maior vazão para movimentos inconscientes se expressarem através dos dias, dando-nos a chance de descobrir em nossa sombra a origem de padrões de comportamento destrutivos e viciosos, assim como de descobrir, através disso, como tomar posse dessas características e utiliza-las a nosso favor.
Nosso retorno a ancestralidade, aos que vieram antes de nós, é um retorno a nossas raízes sanguíneas e as nossas ancestralidades não sanguíneas (mestres e instrutores, companheiros de jornada, povos que originaram nossos sistemas de crenças, os espíritos nativos da terra onde vivemos, etc). Retornar as raízes é se fortalecer em um dos períodos do ano onde mais nos isolamos.
Significado Metafísico
Samhain é tempo de silêncio e de recolhimento, para poder ouvir com clareza a linguagem da alma, e honrar a força e a herança legada por nossos ancestrais. Observar a si mesmo e ver com clareza tudo aquilo que guardamos embaixo do tapete da consciência e que projetamos como defeitos e problemas no mundo externo, de entender o papel de nossas próprias escolhas e decisões na manifestação da realidade que vivemos, em responsabilidade e autoconhecimento, deixando morrer no caldeirão escuro da Deusa tudo aquilo que não serve mais em nós, para que sirva de matéria em sua alquimia para fertilizar as sementes que plantaremos na primavera.
Mas nem tudo são flores: o isolamento deste período do ano pode dar início a processos internos de autoflagelação e ativar recordações negativas que ainda não temos capacidade de processar. É importante ter em mente qual o limite e o folego disponível para mergulhar no inconsciente. Se não processou bem a morte de um ancestral, a ocasião pode ser boa para tratar isso, mas tenha consciência do seu limite, se está realmente em condição de ativar esse processo.
Que o retorno invernal ao útero da Grande Mãe possa nos fortalecer para um renascimento saudável na primavera, que nossa casca velha e folhas murchas deem lugar a nova pele e viço no novo ano…
Por: Fernanda & Ghaio.